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calça jeans
| Foto: Bigstock

Não há coisa mais uniformizadora do que o desejo de parecer diferente. O exemplo mais à mão talvez sejam os hipsters, aqueles caras na casa dos 30 anos metidos a intelectual que usam barba, camisa quadriculada e bebem cerveja artesanal. Certa feita um veículo fez uma matéria sobre os hipsters serem todos iguais e colocou a foto de um hipster para ilustrar. Então um hipster, inconformado, processou o veículo pelo uso indevido da sua imagem. Com alguma apuração, descobriu-se que o hipster fotografado não era ele, mas algum outro que aceitou compor um banco de imagens.

Dos anos 90 a meados dos anos 2010, é bem capaz de termos vivido uma padronização meio involuntária sem que nos déssemos conta. Tenho em mente o império da calça jeans. Mulheres sempre usaram saias e vestidos, e há pelo menos um motivo prático para isso: facilidade para se aliviar. Sem a comodidade de um banheiro individual, os homens fazem em pé e as mulheres fazem agachadas. Uns se servem da braguilha e outras suspendem a saia. Se agachar, usar uma braguilha e tentar não molhar nada é algo, de fato, muito inconveniente.

Ali pela II Guerra, Marlene Dietrich causou frisson ao usar trajes masculinos, calças inclusas. Mas custou muito a virar moda. Além disso, o que virou uniforme feminino nos anos 90 era uma calça em particular, a calça jeans. O jeans é mais velho que Marlene Dietrich e estava associado ao trabalho fabril quando ela nasceu. Embora sua origem seja italiana, o tecido ficou conhecido por um nome em inglês e tornou-se quase indissociável da calça azul usada por homens e mulheres. O pontapé inicial para isso provavelmente foi a marca Levi’s, criada em 1853 por um judeu alemão que migrou para a Califórnia. Ali o jeans encontrou solo para se tornar um ícone do American Way of Life.

Nos anos 50, James Dean causa sensação usando calça jeans, e por aí se entende que o item tenha se tornado objeto de desejo entre os homens. Depois, é as vez de os hippies aderirem ao jeans, que passa a ser um artigo da contracultura. Janis Joplin usava jeans, mas ainda não era um uniforme feminino: as hippies gostavam de saiões floridos e de pantalonas coloridas.

A onipresença da calça jeans deve ter começado para valer nos EUA dos anos 80, quando a moda era fazer muito espalhafato da cintura pra cima, com ombreiras e laquê. Como nos anos 80 o Brasil era bem fechado, o jeans deve ter se tornado febre entre nós só com Collor, que abriu as importações.

“Padrões opressivos de beleza”

Outra mudança importante na moda é o advento do prêt-à-porter, “pronto para usar” em francês. Antes a pessoa ia ao alfaiate ou à costureira para fazer roupas adaptadas ao seu tamanho. Ao meu ver, isso só torna a vitória do jeans feminino ainda mais intrigante. Uma saia, para caber numa mulher, só tem uma medida muito importante: a cintura. Não importa se a mulher tem culotes ou gambitos; se é bunduda ou chulada: se a saia deu na cintura e é folgadinha, a mulher vai poder usar. Não só a mulher, como até os homens, que não têm dificuldades em encontrar saias para se fantasiar no carnaval. Quanto à calça, ela de fato é conveniente para o corpo masculino. Homem engorda na barriga, não nas coxas e na bunda. Pode, portanto, seguir usando a mesma calça após ganhar peso, colocando-a abaixo da crescente pança. Outra opção para lidar com a dita cuja eram os suspensórios, que permitiam uma cintura alta e folgada.

Nasci em 90, então vivi o auge da calça jeans no Brasil. Usá-las nunca teve nada de disruptivo para a minha geração; ao contrário, era parte do uniforme da escola. E comprá-las era um tormento: parece que até uns anos atrás as calças jeans de lojas de departamento eram projetadas para retângulos humanos. Toda vez tinha que reduzir a cintura (senão mostrava a calcinha toda ao sentar) e encurtar as pernas. Eu, em particular, nunca tive problemas reais ou imaginários com peso. Mas, como a minha geração viveu o boom dos transtornos alimentares, é provável que eu seja exceção. E se eu não fosse exceção, bem poderia crer que eu era mal feita e não as calças. E o resultado seria achar que preciso emagrecer muito, pois só assim minhas coxas caberiam naquelas calças desenhadas para mulheres-retângulo ou modelos anoréxicas.

Quem financiaria e quem faria um estudo que mostrasse que a adoção compulsória de vestuário unissex geraria transtornos na autopercepção das adolescentes? No entanto, se voltássemos aos anos 30 e disséssemos a uma pessoa normal que no futuro as mulheres todas andariam de calças iguais, como se fosse um uniforme, a conversa toda pareceria coisa de gente doida. Só quem ia achar bonito era feminista e adeptos de utopias progressistas.

O reaparecimento dos vestidinhos

Agora, constato que a coisa mudou de figura. Depois de muitos anos, este aniversário ganhei bermudas justas de loja de departamento, vesti-as a contragosto e cabiam. Ou seja: parecem ter parado de fazer só roupa para retângulo. Há vários anos, eu só ganhava roupa de loja infantil, porque é onde se vendem roupas pequenas e com bom caimento.

Mas além disso agora é fácil andar na rua e ver saias que não são nem de periguete, nem de crente. São saias e vestidos coloridos ou floridos: uma coisa elementar, um feijão com arroz do gosto feminino. No entanto, não se encontravam em lojas por aí.

Para isso, eu tenho uma explicação: China. Vejam uma empresa como a chinesa Shein, por exemplo. É comum encontrarmos textos que tratam da dimensão econômica somente; ou, no máximo, focando os impactos ambientais. De fato, é uma dimensão bem relevante: a China criou uma empresa varejista de moda 100% online e 100% voltada para o mercado não-chinês cuja clientela é conquistada por meio de anúncios em redes sociais.

Eu mesma nunca comprei nada da China assim, mas os anúncios capturam a minha atenção porque vendem o tipo de coisa que acho bonita. E como a marca é um sucesso, só posso supor que a moda ocidental não estava mais suprindo os desejos ocidentais.

Mas, como eu vinha dizendo, agora vejo coisas bonitas na rua e compro. A penúltima foi um vestido vermelho de confecção local, sem etiquetas; a última, uma saia azul florida de um atacadista paulistano que não envia pelo correio – se é fabricação local ou chinesa, não consegui descobrir. Em princípio achei que fosse chinesa por causa da etiqueta em inglês.

Esse tipo de roupa, folgado e com bom caimento, é muito mais adaptado ao prêt-à-porter do que a calça jeans feminina. Quando o prêt-à-porter começou, entrou na moda a figura da melindrosa, com seu corte de cabelo curto e suas roupas folgadas que não deixavam de realçar a beleza das formas.

Roupas duráveis

É curioso que as críticas relativas à sustentabilidade se concentrem na gigante chinesa. Elas vão desde o consumismo fomentado pelo aplicativo à má qualidade que faz das roupas itens descartáveis.

Tenho no meu guarda-roupa saias de diferentes fases da vida da minha avó e roupas de mais de 10 anos atrás. Isso prova que são roupas de boa qualidade – mas qualidade não é a única coisa necessária para permanecer muito tempo usando a mesma roupa. Há mais coisas além da qualidade que tornam as roupas descartáveis. Se eu digo que uso roupas da minha avó, com certeza haverá quem conclua que me visto muito mal. Logo, uma moda estável é importante para que uma roupa seja usada por bastante tempo. Assim, podemos concluir que a moda dos anos 80 foi um desastre ambiental, porque ombreira nenhuma se aproveita. Pensando mais um pouco, concluímos que poucas modas foram assim; e que é perfeitamente possível encontrar em fotos dos anos 50 a 70 roupas que poderíamos usar hoje.

O outro fator que leva alguém a usar por muito tempo as mesmas roupas é, naturalmente, manter o peso por muito tempo. Nossa sociedade está muito ocupada em combater a gordofobia e o dano ambiental ao mesmo tempo. Ora, se uma pessoa for se expandindo para os lados ao longo da vida ininterruptamente, a sua vida será encurtada, mas ela comprará muito mais roupas do que eu. Não faz o menor sentido colocar o meio ambiente como medida de todas as coisas e, ao mesmo tempo, normalizar a obesidade.

Agora, essa obesidade generalizada também está atrelada à generalização das doenças mentais. Com as quais, creio eu, as calças jeans contribuíram na minha geração.

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