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O que há de ingênuo na tradição econômica dos EUA, segundo Sohrab Ahmari
| Foto: Midjourney

No último texto, vimos o lado factual do livro Tyranny, Inc de Sorhab Ahmari. Vamos à parte teórica.

Segundo Ahmari, os Estados Unidos foram, ao menos desde a época de Abraham Lincoln, influenciados por uma visão ingênua da economia, que pode ser resumida assim: “Quem quer que trabalhe duro o bastante consegue o capital necessário para se tornar um proprietário de recursos e contrata outros aspirantes a proprietários. E, portanto, qualquer trabalhador cujas aspirações não sejam realizadas em vida há de ter sido imperdoavelmente preguiçoso, ou especialmente azarado, despojado pelo próprio Onipotente” (p. 25). A base para isso são discursos de Lincoln.

No entanto, na Europa o problema dos conflitos entre classes já era muito visível. Décadas antes da ascensão do comunismo, o Papa Leão XIII, na Rerum Novarum (1891),“falava de ‘um temível conflito’ que resultava da ‘alteração das relações entre os operários e os patrões’ e da ‘influência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da multidão’. Tais condições deram lugar à ‘opinião enfim mais avantajada que os operários formam de si mesmos e a sua união mais compacta’, bem como à ‘corrupção dos costumes’” (p. 144).

Após o crash da Bolsa e em meio a guerras mundiais, ambos os lados do Atlântico (ele tem em mente os EUA e a Europa, mas a América do Sul poderia ser facilmente incluída) empreenderam um regime por ele chamado de “capitalismo socialmente gerenciado”. Na Europa, o nome disso é “social-democracia”; nos EUA, foi o New Deal. Ahmari está cônscio das polêmicas, mas aceita a explicação mais comum para o problema, que é a oferta sem demanda. Os trabalhadores dos EUA recebiam uma miséria e tinham uma produtividade colossal; recebiam pouco demais para serem clientes, logo, a produção ficava encalhada à falta de clientes e se seguia um efeito dominó de quebradeiras que espalhavam o desemprego. Nada impede que o governo tenha contribuído com a besteira também.

Ahmari atribui aos EUA essa visão ingênua de longa data, bem como uma aversão a utopias. Essa visão ingênua abriu espaço para que as ideias de Hayek expressas em O caminho da servidão tomassem lugar nos corações e mentes dos norte-americanos – com a ajuda de think tanks muitíssimo patrocinados por partes interessadas, naturalmente. O principal erro de Hayek n’O caminho da servidão é a possibilidade de existir uma ordem política sem coerção. Ora, diz Ahmari, tal coisa é uma utopia; mais precisamente, uma utopia de mercado, que veio a ditar o tom da política dos EUA e da Inglaterra a partir da década de 80 até os dias de hoje. Na realidade, o trabalhador assalariado está sempre sob a ameaça da fome; por isso, a liberdade para largar o emprego só existe numa situação de pleno emprego – que está mais para exceção do que para regra.

Ahmari está coberto de razão quanto a isto, que é a questão fundamental do livro. Mas creio que ele poderia melhorar um pouco a sua história dos EUA. Está longe de ser verdade que os EUA são um país avesso a utopias: o país foi construídos por uma miríade de utopias, já que os dissidentes ingleses viram na América terra a perder de vista no qual poderiam se isolar em comunas nas quais pudessem testar suas utopias. Não há nada mais utópico que um quacre – e aos EUA foram os quacres fundar suas comunas igualitárias que preconizavam não só a igualdade político-econômica, como a igualdade entre os sexos. (Como uma curiosidade, anote-se que os shakers, um racha dos quacres, pregavam o celibato, mas ainda assim, até pelo menos o ano passado, a sua comuna existia. Era povoada apenas por um casal de idosos celibatários.) Ainda na Inglaterra, os quacres foram pioneiros nas reivindicações trabalhistas e de igualdade entre os sexos.

Então os EUA são desde a sua fundação utópicos pra chuchu, utópicos pra dedéu. Adotar uma utopia de mercado está consistente com sua tradição utópica. O que desvia da sua tradição é a atomização do trabalhador, legada pela Era Lochner da Suprema Corte.

Muito se fala na ética puritana ligada ao surgimento do capitalismo. Mas pouco se fala que esses protestantes utopistas que emigraram para os EUA tinham, também, um forte senso da organização de corporações trabalhistas voltadas à negociação com os patrões. Querer ganhar mais é parte da ética capitalista; e essa vontade acometia não só o patrão, como também os empregados. Surgem daí as labor unions, que são muito anteriores aos sindicatos europeus. A primeira greve moderna ocorreu na Filadélfia no século XVIII, quando Marx nem era nascido. Significativamente, a industrialização nos EUA não foi uma hecatombe social, bem ao contrário da Inglaterra. Podemos fazer uma suposição nada ousada de que, se o capitalismo demanda clientes, um país só pode ter trabalhadores miseráveis se viver de exportação. Era o caso da indústria têxtil inglesa; era o caso da China de Deng Xiaoping; foi o caso próprio Brasil, que, enquanto teve escravidão legal, exportava açúcar e café.

Mas no meio do unionismo havia uma Era Lochner. Aqui, outra vez temos uma peculiaridade cultural desse país fundado por seitas protestantes: a ditadura velada do judiciário. Assim como os protestantes dizem seguir a Bíblia – e delegam o poder ao intérprete da Bíblia –, o os cidadãos norte-americanos dizem seguir a Constituição – e delegam o poder à Suprema Corte, intérprete da Constituição. Jesus diz em três evangelhos que divórcio não pode; mas, com uma hermenêutica da rebimboca da parafuseta, conclui-se que pode. Não há em parte alguma do texto constitucional o direito ao aborto; mas, com uma hermenêutica da rebimboca da parafuseta, diz-se que há, para cinquenta anos depois mudar de ideia, com os vira-latas brasileiros achando tudo muito bonito. E antes que se diga que isso é um problema ao qual os “originalistas” estão imunes, a liberação do uso da justiça privada para arbitrar questões trabalhistas foi defendida pelo “arqui-originalista” Antonin Scalia, como conta Ahmari no livro.

Ao contrário de Ahmari, não creio que O caminho da servidão seja um mero panfleto ideológico; creio que, apesar das falhas, seja um bom livro do século XX. Ahmari lembra que, na época do laissez faire, muitos dos seus adeptos defendiam a intervenção estatal contra os monopólios. Hayek, diferentemente de Friedman, se conta entre eles. E O caminho da servidão faz entender bem o porquê: a concentração de poder político implica concentração de poder econômico, e vice-versa. Se o Estado for todo-poderoso, ele vai mandar na economia; e se um particular monopolizar as riquezas de um país, irá mandar na política. Assim, para manter a liberdade, é preciso que o Estado dissolva monopólios – na década de 40, as pessoas tinham instrução e memória demais para acreditar na lenga-lenga anarcocapitalista de que só o Estado cria monopólios.

A descrição que Hayek faz dos fatos é peculiar a um período histórico. Um medieval, por exemplo, não teria por que crer que concentração de dinheiro levasse à concentração de poder político, já que o mando político era da nobreza, cujo poder advinha de propriedades rurais hereditárias, cheias de súditos dentro. No entanto, uma vez inaugurada a modernidade, a coisa muda radicalmente de figura e cabe na descrição de Hayek.

Neste mundo em que os conglomerados empresariais têm mais dinheiro que os Estados nacionais (que vivem de emitir dívida para especuladores), e no qual ninguém mais pretende implementar um modelo soviético de planificação (coisa que Hayek viu de antemão que dava errado), os receios de Hayek quanto ao Estado nacional não fazem mais sentido. Temos que temer a Amazon, a Pfizer, a Johnson & Johnson, as ONGs “filantrópicas” dos bilionários, e não há jeito de nos proteger contra elas sem um Estado forte e soberano. O que temos hoje é um Estado destituído de soberania, pois foi privatizado por ONGs que mandam em tudo e vão deixando as leis e jurisprudências do Ocidente cada vez mais uniformes, contra a vontade do povo.

Por outro lado, uma coisa da qual eu senti falta no Tyranny, Inc foi uma crítica dos auxílios, que, no liberalismo, foram introduzidos por Milton Friedman. Foi num livro de cabeceira dos pós-liberais -- A Grande Transformação, de Polanyi – que aprendi sobre as origens do “imposto negativo” de Milton Friedman ainda no s. XVIII, em Speenhamland, e que ele trouxe desagregação social por onde passou, além de atrapalhar a formação de sindicatos e o crescimento da indústria.

Também pensei em Polanyi porque ele afirma que, aos olhos do mercado, são indiscerníveis o fascismo e o socialismo, porque o esquema econômico da harmonia de classes regidas pelo Estado é idêntico. No entanto, há entre eles uma significativa diferença moral. Ou seja, quando Hayek escrevia contra o nazismo, ele escrevia contra um sistema econômico defendido por muita gente que não era nazista – em especial, na Inglaterra, onde Hitler inspirou muito trabalhista. E uma coisa à qual pouco se atenta é que até hoje o nazismo é elogiado por suas façanhas econômicas (vide o fim da hiper-inflação), de infraestrutura (vide as Autobahn) e da indústria nacional (que incluía a Volkswagen). O problema dos nazistas, até onde eu saiba, foi “só” moral. E por aí se vê que a moral nunca é “só”. Então eu creio que um bom ataque a Hayek é apontar que, ao contrário da União Soviética, o III Reich funcionou. É imoral, mas funciona. Poderia haver um esquema econômico similar ao III Reich que não fosse genocida? Aí é uma questão em aberto. Polanyi diz que sim; Hayek diz que não.

Bom, Hayek dividiu o Nobel de economia com um seu oposto, Gunnar Myrdal, o pai do Estado de Bem Estar sueco. Já me detive sobre esse cidadão neste texto aqui. O Estado de bem-estar sueco é eugenista; e o mesmo Gunnar Myrdal foi responsável pelo bem-estar implementado entre os negros estadunidenses cujo fito era, também, reduzir a sua população. Em vez de botar todo o mundo numa câmara de gás, o governo dos EUA paulatinamente instala clínicas de aborto nos bairros negros e chama de “direito”, ao tempo que incentiva a desagregação familiar entre os negros por meio de cheques. Não é à toa que Sowell, um negro estadunidense, associa as benesses estatais a uma tentativa de degradação e extermínio. Significativamente, em prefácio a A vida na sarjeta, do inglês Dalrymple, Sowell aponta que os pobres ingleses, brancos, passam pelo mesmo processo de degradação social que os negros em seu país natal.

Vale lembrar então que a moral dos nazistas era largamente influenciada pelo establishment científico anglo-americano. Num país onde o Estado imoral era onipotente, o racismo científico foi aplicado com eficiência total: a Alemanha catou todo o mundo, pôs nas ferrovias e mandou para um complexo industrial de morte. Num país onde o Estado imoral era frouxo, o racismo científico foi aplicado de maneira muito menos eficiente: os negros continuam nascendo nos EUA, apesar de tudo. E num país democrático com Estado forte, criou-se um implacável programa de eugenia – que ficou bem na fita por ser uma democracia; mas, se o mundo tivesse uma obsessão real pelo combate ao racismo e fomento à globalização, o natural seria reavaliar Salazar, patrocinador de Gilberto Freyre e promotor da mestiçagem e da assimilação dos negros nos estados portugueses de Angola e Moçambique.

A questão do racismo vai longe. Se recuarmos no tempo, veremos que as labor unions dos EUA eram protestantes e racistas (um pleonasmo à época), não aceitando católicos nem negros. Ora, muito do ódio dos germânicos aos eslavos vem do fato de, no Império Austro-Húngaro, eslavos pobres “roubarem” os empregos dos germânicos por aceitarem trabalhar por menos. Na Alemanha, a questão do “roubo” de empregos era mais um problema de classe média, na qual os judeus se sobressaíam; mas também havia o opressivo sistema do padrão ouro, tocado na Europa por banqueiros judeus famosos como os Rothschild. Ou seja: por trás do racismo (ilegítimo), havia uma motivação trabalhista legítima, bem como contestações legítimas à ordem econômica mundial. Mas, por uma decisão moral espúria, as questões não foram abordadas da maneira correta.

Hoje, a situação virou de cabeça para baixo. As elites obrigam os trabalhadores dos países ricos a aceitarem flagelados do terceiro mundo enquanto cobrem com o manto do “antirracismo” suas intenções espúrias de pagar salários de fome, destruindo a classe média. E que quando a classe média acha ruim, só pode ser racismo.

Por fim, a outra coisa da qual senti falta no livro foi a questão da segurança pública, que, no primeiro mundo, está em crise graças à imigração desenfreada, à política de “paz às drogas” e ao judiciário leniente (prender esses imigrantes e os negros de famílias desestruturadas também só pode ser racismo). Com meus botões, penso que serve para diminuir a natalidade (é o que o Bem-Estar nos EUA sempre promoveu entre os negros, e hoje o Estado lá promove violência). Quem sabe também não apareça uma privatização da segurança pública.

Eis então o cerne da minha crítica: isso que ele chama de neoliberalismo não se reduz, no campo econômico, a uma anarquia na qual as empresas podem fazer o que quiserem, nem à substituição da economia real pela especulação financeira. Deveria incluir um Estado mínimo que é capaz de, via ONGs ou mecanismos compensatórios, fomentar ativamente a desagregação familiar e a redução populacional dos “indesejáveis”. Interessam mais Friedman e Sanger do que Hayek. No fim das contas, há Estado; o problema, no nazismo como no neoliberalismo, é a imoralidade do Estado.

Encerro este texto com esta citação de Tyranny, Inc, para que o leitor possa julgar se descreve a realidade atual (lembrando que o termo “neoliberalismo” está bem menos castigado em inglês do que nas línguas ibéricas):

“No mundo desenvolvido, o neoliberalismo é associado ao fortalecimento da economia financeira em relação à economia real; ao enfraquecimento da indústria e à multiplicação dos cinturões da ferrugem em áreas fabris outrora vibrantes; um declínio da sindicalização (labor unionism), sobretudo na economia privada; a abertura das fronteiras para o movimento do capital, incluindo o ‘capital humano’; a injeção forçada dos mercados nas áreas da vida que a maioria das pessoas considera comum (direitos sobre a água etc.) ou sagrados demais para serem vendidos (aluguel de úteros); e a derrocada dos Estados-nação perante longínquas entidades transnacionais dominadas pelas elites.”

Atualização

Onde se lia "Décadas antes de Marx, o Papa Leão XIII, na Rerum Novarum", lê-se "Décadas antes da ascensão do comunismo, o Papa Leão XIII, na Rerum Novarum (1891)".

Atualizado em 25/09/2023 às 15:36
Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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