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O jornalista Chris Hedges esboça em seu livro uma história da esquerda dos EUA
O jornalista Chris Hedges esboça em seu livro uma história da esquerda dos EUA| Foto: Reprodução YouTube/ Media Sanctuary

Nos anos 90, seria fácil reconhecer que a esquerda dos EUA era bem diferente da latino-americana: uma era progressista, capitalista e politicamente correta; outra, marxista, nacionalista e católica. A mudança no perfil da esquerda brasileira pode ser explicada por meio do crescimento da influência da esquerda dos EUA sobre ela. E tal crescimento, a seu turno, pode ser explicado por meio do crescimento da Fundação Ford e da Open Society.

Nós, brasileiros, herdamos dos ibéricos o costume de ficar nos historiando. A todo momento estamos falando sobre nossa própria história, seja ela recente ou remota. Os EUA não têm esse costume; em geral, seus homens de letras preferem tratar de assuntos universais ou globais a se voltar às minúcias da vida doméstica. (É mais fácil encontrar entre eles um debate sobre Tucídides do que sobre o Weather Underground, por exemplo; já nós falamos com mais facilidade do Plano Cruzado do que da queda do Império Romano.)

Por isso é muito difícil — para nós e para eles — enxergar que também houve uma mudança na esquerda deles. É o que descobri lendo o livro 'The death of the liberal class' [A morte da classe liberal, em tradução livre], de Chris Hedges, publicado em 2010. É um jornalista de esquerda vencedor do Pulitzer que esboça uma história da esquerda dos EUA e explica a sua degeneração no politicamente correto como uma vitória das megacorporações que tomaram o Estado. Ele fala de “globalismo” — um palavrão para toda a esquerda brasileira — e de marxismo cultural (“novo marxismo acadêmico”, nas palavras dele, que seria puramente cultural). Vale nos inteirarmos de sua perspectiva.

A extinção dos comunistas – e da arte de qualidade

O comunismo existiu em todo o Ocidente, e os EUA não são exceção. Os EUA tampouco são exceção no que concerne à demografia que gosta do marxismo: acadêmicos e artistas. Os comunistas fizeram parte do ecossistema político dos EUA até o advento do macartismo, que criou uma lista negra dos suspeitos de comunismo a ser usada por patrocinadores e empregadores. Um símbolo do impacto do macartismo sobre a classe artística é o ator Philip Loeb (1891 – 1955). Em 1950, o veterano da Broadway foi acusado de ser comunista. Tinha um filho deficiente para sustentar e não conseguiu mais emprego nenhum. Não adiantou ele negar e a mera acusação selou o seu destino financeiro. Suicidou-se.

Para Chris Hedges, o macartismo foi responsável por acabar com o teatro americano. A geração de Orson Welles não deixou sucessores porque boa parte dos artistas aderiu ao macartismo, entregou os colegas e se submeteu às mesmas empresas que adotavam a lista negra. A ideologia mais comum entre os artistas passou a ser uma forma de esquerdismo parecida com aquela que conhecemos. Agora o que há é essa beautiful people de Hollywood.

A esquerda americana era religiosa

Se o comunismo era uma importação europeia, os EUA tinham um esquerdismo próprio. Tratava-se do Social Gospel (ou Evangelho Social) e do Cautauqua, dois movimentos de protestantes que remontam ao século XIX.

Os ingleses que foram para a América em geral eram calvinistas. Como Weber notoriamente expôs em sua obra 'A Ética Protestante', a teologia calvinista em particular levava à interpretação da riqueza como indício de ser um escolhido de Deus, de modo que o fiel era, naturalmente, levado a querer acumular mais e mais riqueza a fim de se assegurar de que é um escolhido de Deus. Não é de admirar, portanto, que haja surgido nos Estados Unidos uma religiosidade cristã anormal, profundamente materialista. E um resultado disso foi o Evangelho Social.

Cito Hedges: “A fé nas instituições humanas estava no cerne do Evangelho Social, um movimento cristão articulado na virada do século em torno de livros como 'O cristianismo e a crise social', publicado em 1907, e 'A teologia do Evangelho Social', publicado uma década depois, ambos escritos pelo principal defensor do movimento, Walter Rauschenbusch. O Evangelho Social substituiu uma preocupação com a danação e o pecado pela crença no progresso humano. Ele gerou o movimento Chautauqua, que teve centenas de seções pelo país. As comunidades chautauquas apoiavam trabalhadores sindicalizados, acordos coletivos, serviços sociais para os pobres, programas de higiene e educação universal, embora não estivesse livre de muitos preconceitos da época e excluísse católicos romanos e afro-americanos. […] A declaração do Reverendo Josiah Strong de que ‘Cristo não veio só para salvar almas individuais, mas a sociedade’, transformou as igrejas em sociedades de temperança, espaço para sindicalistas e cozinhas de sopões. O Evangelho Social secularizou a escatologia cristã e fundiu-a com visões utópicas de progresso material adotadas pela classe liberal mais ampla.”

Cabe destacar que a exclusão de negros e católicos não é exatamente um mal da época, mas dessa corrente religiosa. Em 'Black Rednecks and white liberals' [Negros caipiras e liberais brancos, sem edição no Brasil], Sowell aponta que os negros de maior sucesso escolar eram os que estudavam em escolas de elite para negros ou em escolas católicas. Quando averiguamos as origens de alguns mulatos dos EUA, tais como Jimi Hendrix, Martin Luther King, não é raro encontrar irlandeses em sua ancestralidade. A imigração irlandesa criou a mais antiga comunidade católica nos EUA. Por um lado, o catolicismo fez jus ao universalismo do seu nome também nos EUA; por outro, o exclusivismo dos calvinistas os colocavam ao lado dos negros e dos índios nas franjas da sociedade. O anticatolicismo arraigado daquele país de formação calvinista dificilmente o fará condenar esse preconceito.

A universidade

Assim como hoje, no Brasil, há uma “direita” autorizada (estilo Novo), nos EUA, desde o macartismo, passou a haver a esquerda autorizada, que é essa ideologia progressista com raízes no Evangelho Social.

Além das artes, o outro braço do marxismo é a Universidade. Chris Hedges toca num assunto muito pouco falado, que é a absoluta falta de estabilidade na qual vive a maioria dos cientistas dos EUA. Em geral, o doutor se forma e faz pós-doc. O pós-doc é limbo: você fica como pesquisador trabalhando no laboratório alheio por um prazo curto. Para se ter uma ideia, uma amiga minha foi fazer um pedaço do doutorado numa universidade da Ivy League e tinha como colegas de laboratório imigrantes de meia idade. Um indiano, pai de família, não via a mulher e os filhos havia mais de um ano. Emprego como professor é para poucos; e o emprego com a tenure (estabilidade) é para poucos dentro desses poucos que conseguem virar professores. Então viver como acadêmico é viver com a faca no pescoço, nos EUA. (E o Brasil segue no mesmo caminho desde quando formou doutores demais.)

Uma coisa que sempre me intrigou no Brasil é como a Fundação Ford conseguia doar para as federais, se elas limitam tanto os doadores que praticamente só recebem do Estado. Nos EUA, Chris Hedges também lastima que seja muito difícil doar, e que os doadores sejam muito limitados. Segundo ele, trata-se de só mais uma seara domada por grandes empresas.

Podemos ter mil críticas à nossa rede estatal de pesquisa. Mas certamente ela não gerou nada como uma Pfizer fazendo pesquisas que dizem que a vacina da Pfizer é boa, e um Estado que aceite isso sem ver conflito de interesses. Muito ajuda quem não atrapalha.

Marxismo cultural

Pois bem: a acompanharmos Hedges, o identitarismo seria uma decisão política das empresas, que teria tido uma ascensão vertiginosa sob os auspícios de Obama. Leiamo-lo: “Embora pareça, à primeira vista, um movimento em prol de mudança social, a campanha por diversidade cultural […] não desafia as estruturas políticas e econômicas que estão enfraquecendo rápido a classe trabalhadora. Garantir que pessoas de diversas raças ou orientações sexuais apareçam nos programas e comerciais televisivos apenas aumenta o círculo de novos consumidores. O multiculturalismo é um apelo que clama pela estrutura do poder empresarial para fomentar a inclusão. O apelo foi obtido politicamente com a eleição de Barack Obama. Viu-se o estabelecimento de departamentos multiculturais em muitas universidades. Mas é um clamor […] por ‘patronato, não revolução’.” Só discordo de que isso não representa mudança. Representa mudança, porque a ampliação do poder empresarial sobre a sociedade é uma mudança. Tirando isso, podemos dizer que Hedges acertou em cheio lá em 2010, já que agora estamos às voltas com o ESG. O ESG nada mais é que a privatização das questões sociais, que deixam de ser decidida por um eleitorado e passam para as mãos de um cartel em Davos.

Assim, o marxismo, que bem ou mal trata de luta de classes, foi abolido na academia e substituído por uma demanda por “inclusão” a ser gerida por empresas. Quanto ao “globalismo”, Hedges não dá uma definição, mas, pelo uso, vemos que ele tem em mente sobretudo o livre comércio global. Aos seus olhos, o NAFTA teria sido uma traição contra o trabalhador dos EUA, já que tirou os empregos do país.

Então ficamos assim: os EUA tinham uma esquerda calvinista focada na prosperidade do trabalhador. Esta esquerda convivia com a marxista ortodoxa. Os comunistas foram extintos com o macartismo, e esses calvinistas seculares acabaram sendo domesticados pelas grandes empresas. Essa esquerda calvinista mudou e virou esse clamor por gestão empresarial de desigualdades de qualquer natureza — cor, sexo, orientação sexual, identidade de gênero, peso... — exceto a de classe. Não há mais espaço, na esquerda dos EUA, para a reivindicação de melhores salários e da diminuição de desigualdades sociais.

No próximo texto, veremos mais mudanças culturais fomentadas por essa agenda empresarial, indo, inclusive, contra a própria ética calvinista que serviu para o desenvolvimento do capitalismo.

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