Eu ainda achava que o crime do momento era o de Foz do Iguaçu, quando um amigo me mandou os prints com as páginas curtidas no Facebook pelo médico anestesista que foi preso acusado de ter estuprado uma parturiente. A um só tempo, descobri a existência do novo crime do momento, bem como as preferências político-ideológicas do criminoso: esquerdista, ateu, defensor dos animais, eleitor de Ciro. O meu amigo se gabava de ter achado o perfil cedinho, tanto que ainda não havia ninguém o xingando. E – apostava ele – ninguém o xingaria tão cedo, porque era de esquerda. Se fosse um bolsonarista, a internet já teria vindo abaixo. A internet, é claro, seria secundada pela imprensa comum. Quanto ao partidarismo desta e à sua decadência frente às redes sociais, chegou-me via zape esta imagem, que retrata com concisão máxima o atual estado de coisas. Caso queiram checar, o tuíte do presidente está aqui, e o da CNN, aqui.
É só cinismo?
Logo a observação do meu amigo foi repetida pela internet afora, mas sem migrar para a imprensa comum. Apareceram ainda imagens do médico com hashtag #forabozo e #vivaosus, típicas do pessoal do Bem que vive apontando o dedo para os outros. A banda não-esquerdista da internet condenava o cinismo daqueles que catavam as opiniões políticas dos criminosos a fim de, caso fossem de direita, explicar o crime pelo direitismo.
É cinismo? Sem dúvida. Mas não é só cinismo; há uma teoria política por detrás dessa postura. Trata-se de uma teoria política impossível de provar-se falsa, a saber: que o Ocidente precisa ser refundado, e sua população, reeducada, a fim de que o paraíso se instaure na terra. Cada estupro é uma prova do machismo atroz; cada pardo morto em confronto com a polícia, uma prova do racismo estrutural. Et cetera. Ora bolas, por toda a história da humanidade, em todos os povos do mundo, existiram estupros e mortes. Mas de alguma maneira, a antropologia cultural só é mobilizada para mostrar como o Ocidente é mau, e o que sobra – milênios de história mais ou menos ocidental – é rotulado como uma cultura particularmente má, passível de ser desconstruída. O que entra no lugar? A utopia progressista, na qual o mundo será todo composto por supostas democracias liberais de mercado supostamente livre. Mas na verdade essa democracia nada mais será que uma disputa entre facções progressistas, pois toda discordância real será considerada criminosa por meio de leis contra crime de ódio ou múltiplas fobias. Ao cabo, a máquina burocrática toma o poder do povo para decidir questões fundamentais e as disputas legítimas se darão somente entre uma “direita” com cara de Eduardo Leite e uma “esquerda” com cara de Randolfe: todos a favor da “ciência” e contra o “ódio”, discutindo questiúnculas perante a claque enquanto a burocracia prende por transfobia quem ousar dizer que mulheres não têm pênis. Pelo andar da carruagem, a direita mais radical dirá que mulheres trans não devem ganhar os modess que o Estado comprou das empresas feministas, verdes, antirracistas. A esquerda dirá que todes têm direito a modess, e que mulheres trans precisam pingar líquidos vermelhos no modess a cada mês, senão se matam. A internet e os filósofos vão discutir essa questão como se fosse a coisa mais importante do mundo, e o centro, moderado, colocará o direito ao modess como um direito humano fundamental, pois a qualquer momento a pessoa pode fluir para o gênero feminino.
Quanto ao mercado supostamente livre, dá-se o mesmo: cada empresa deve ter um compliance para assegurar os reguladores de que não são machistas, nem racistas etc. Só empresas grandes vão ter como arcar com quotas de aspones identitários e a qualquer momento poderá plantar um escândalo contra uma concorrente também grande.
O povo é fascista
A esquerda progressista, surgida no mundo anglófono, é uma esquerda de elite que odeia o povo. Quando a Alemanha perdeu a II Guerra e ficou sob tutela dos Aliados, o povo alemão era, com razão, tacitamente tratado como nazista – portanto, o povo era tratado como objeto de repressão até prova em contrário.
O governo alemão ocidental não mudou de mentalidade, e sua burocracia, aliada à imprensa, passou a tratar o seu próprio povo como nazistas potenciais. Exemplos corriqueiros para mostrar a vigência disso aparecem quando acompanhamos a banda Rammstein, da Alemanha Oriental (como já contei aqui). Em 1995, já no mundo livre, a banda estreante lança um CD em cuja capa os membros da banda exibem os músculos. Segundo a imprensa local, isso só pode significar uma coisa: apologia da superioridade racial ariana. Em 1998, os norte-americanos podiam botar Stallone e Schwarzenegger descamisados de fuzil na mão – em 2022, isto seria facilmente interpretado como extremismo e supremacismo branco. Aqui, quando pagodeiro mostra os músculos, ninguém fala nada. Mas eu não duvido nada de qualquer hora aparecer quem diga tratar-se de uma apologia da raça brasileira feita por integralistas.
Em 2008, o “Departamento Federal de Mídia Perigosa para a Juventude” considerou uma canção perigosa e criminalizou a venda e a disponibilidade do CD do Rammstein para os jovens. Na prática, a venda foi proibida pelo Estado. A isso, os EUA não chegaram – ao menos não ainda. De todo modo, não é por falta de vontade do Partido Democrata; os louros cabem ao respeito à Primeira Emenda.
Então ficamos assim: a conduta das atuais elites políticas ocidentais para com o seu povo mimetiza a conduta dos Aliados para com o povo alemão recém-derrotado.
Novidade no Brasil
O Brasil tem um problema para essa narrativa: diferentemente da Europa e dos EUA, nós não somos um país de maioria branca, então fica difícil sair nos chamando de supremacistas. Aqui o normal é ser mestiço e não falar de raça. Assim, todo trabalho dos progressistas entre nós vem sendo o de “desconstruir” a ideia de que o nosso país não é racista e, ao mesmo tempo, nos forçar goela abaixo as classificações raciais.
Já que não podem xingar o povo de supremacista racial, resta atacar o cristianismo. O povo brasileiro é perigoso e merece umas pauladas por levar a sério a sua fé cristã e colocá-la acima dos dogmas identitários. Os evangélicos brasileiros, que se concentram na base da pirâmide social, são atacados como fundamentalistas.
De todo modo, isso é novo no Brasil; coisa de 2010 pra cá. O progressismo está entre nós desde a década de 60, quando a Fundação Ford criou o CEBRAP com os aposentados precoces da USP. Há muito pouco tempo xinga o povão. De 1960 a 2010, o feijão com arroz era equivaler pobre e ladrão para dizer que a violência vai acabar só quando a pobreza acabar e todo mundo cantar “Imagine” soltando pombas da paz. É a “lógica do assalto” de Marcia Tiburi e de todos aqueles partidos que não se mostram nem um pouco preocupados (para dizer o mínimo) em combater a violência causada pelo narcotráfico.
Nessa toada, fez-se uma Constituição que impede psicopatas incorrigíveis de passarem o resto da vida na cadeia. Fez-se também o ECA. Somando-se um ao outro, tem-se o limbo jurídico de Champinha. Desde a Nova República, os bandidos são oficialmente vítimas de uma sociedade. Com amor e educação, tudo se resolve.
Quando um homem estupra uma mulher, desde a Nova República, o normal é culpar a sociedade. O caso do médico seguiu um feijão com arroz que tem por baixo 34 anos. A sociedade é machista, então não é de surpreender que homens estuprem mulheres. Só com “educação” – ou antes reeducação – os estupros cessarão.
A reação brasileira
Na década de 70 o Comando Vermelho engatinhava. A maior facção do país, o PCC, surgiria somente em 1993, meses antes do Plano Real. A violência tal como a conhecemos é arte da Nova República. No fundo, ser um feio, sujo e mal lavado, inadmissível no debate público da maior parte da história da Nova República, era ser contra o “direito dos manos”. Nas periferias, os evangélicos de variadas denominações se destacaram no combate às drogas e na condenação moral da criminalidade. Essas denominações cresciam enquanto a Igreja se infestava de teólogos da libertação. Ou seja: nem que o Papa mandasse, os brasileiros religiosos engoliam a conversa dos progressistas. Mais valia mudar de religião.
Nos anos 2010, já com Dilma, foi introduzida, no Brasil, a polarização em torno da sexualidade. Não se tratava mais de salões acadêmicos debatendo o assunto, mas de pobres furiosos com doutrinação dos seus filhos em sala de aula na escola pública. E tanto na questão do combate à criminalidade como na da doutrinação em sala de aula, um parlamentar feio, sujo e mal lavado se destacava: Jair Bolsonaro. Somando-se isso ao poder de comunicação da internet, Bolsonaro rompeu os limites da pseudodemocracia progressista que nos era imposta. O resultado está aí: Bolsonaro contra uma chapa que reúne os principais antagonistas de 2006 (Lula x Alckmin).
Somente quando Bolsonaro se firmou, as elites começaram a tratar o povo brasileiro expressamente como o povo alemão recém-derrotado em 45. Agora, todo brasileiro é um extremista em potencial, e a marca da besta é a adesão a Bolsonaro. Quanto aos criminosos não-bolsonaristas, aplica-se o velho feijão com arroz bandidólatra.
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