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Que têm em comum o Bacen e universidades paulistas? Os atentados à soberania
| Foto: Bigstock

Este domingo saiu aqui na Gazeta do Povo uma matéria da maior importância: "Real digital dependerá de servidores das Big Techs. Qual é o risco para o Brasil". Toda a nossa vida online precisa de servidores para funcionar. Sites, serviços de e-mail, tudo precisa de um grande computador que armazena dados e softwares os disponibiliza na internet. É como neste desenho que peguei da Wikipédia:

David Vignoni/Wikicommons
David Vignoni/Wikicommons| David Vignoni/Wikicommons

Nossos aparelhos são clientes de um servidor enquanto acessamos a internet. Essa beleza parece muito etérea, muito material, mas uns pipocos nalgumas máquinas podem causar um baita estrago — mais do que qualquer biblioteca, acervo ou laboratório do mundo.

A comparação com a biblioteca é útil. Um incendiário pode destruir uma biblioteca, mas dificilmente conseguirá controlá-la a ponto de dizer "quero eliminar somente tal e tal volume". Por outro lado (como os defensores do software livre costumam apontar) um serviço de ebook consegue deletar da sua biblioteca particular um dado exemplar, como já fez o Kindle com 1984 certa feita.

Mas, para piorar, um servidor, que é algo de um escopo muito maior que uma biblioteca de ebooks. Podem deletar da internet sites e aplicativos. Um precedente disto, que lembrei recentemente, foi o caso do Parler, uma rede social alternativa ao Twitter (pré-Elon Musk) encontrada pelos apoiadores de Trump para driblar a censura e os banimentos do pequeno oligopólio de redes sociais. Uma vez criada a rede, um outro oligopólio entrou em cena: o dos servidores, que tiraram o site do ar e dos repositórios de aplicativo. Amazon, Google e Apple atuaram em conjunto. A Amazon é dona da AWS (Amazon Web Services), líder do mercado de provedores. Assim, a mesma dona do Kindle pode derrubar o 1984 da sua biblioteca de ebooks, pode derrubar sites como o deste jornal e, eis a novidade, pode derrubar a nossa moeda digital.

Outra matéria importante dada por este jornal é "Real Digital: Projeto de moeda eletrônica estatal permite cancelamento financeiro dos cidadãos". Assim, estamos duplamente canceláveis: canceláveis pelo Estado (o que já é mau) e canceláveis pelo cartel das Big Techs (o que é anarcocapitalismo). Em sua "revolução silenciosa", o Banco Central do Brasil está privatizando a moeda brasileira à revelia da população, e com a ignorância dos políticos. Pelo visto, banco central independente e democracia são duas coisas mutuamente excludentes, pois o banco central faz o que quer com a moeda — até mesmo aliená-la — sem depender da vontade ou da ciência do povo e de seus representantes eleitos.

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Mas temos um problema mais profundo que o Banco Central, e anterior a ele. No que concerne à informática, o Brasil teve uma lei desenvolvimentista sem desenvolvimento, e, depois que ficou aberto a importações, não se deu ao trabalho de desenvolver a informática. A Lei de Informática, de 1991, basicamente condenou o país a só ter o computador que ele fosse capaz de fabricar, a fim de desenvolver a indústria nacional. Mas não se criou nada análogo a uma Embrapa para isso. Ao contrário: poucos anos depois, em 1994, chegava ao poder um presidente forjado pela ONG Fundação Ford (através do CEBRAP), Fernando Henrique Cardoso. Com ele, começou o famigerado sucatemento da pesquisa brasileira.

Não adianta o liberal do Twitter e o tio do zape darem piti: investimento estatal em pesquisa e desenvolvimento são indispensáveis para a segurança de um país; ainda mais um país visado como o Brasil. Se a universidade está cheia de cirandeiro que só quer saber de bundalelê (inclusive repetindo a lenga-lenga das ONGs), isso significa que temos que dar um jeito nela, e não que devemos doravante desistir do ensino superior. Se os técnicos virarem cirandeiros depois (e em TI o wokismo está a toda), isso não quer dizer que teremos de viver na pedra lascada, mas sim que precisaremos dar um jeito nos técnicos.

De todo modo, a culpa pelo atual estado de coisas é amplamente distribuída, e um quinhão cabe às próprias universidades públicas. Involuntariamente, eu soube que a autonomia está indo ladeira abaixo nas universidades estaduais paulistas. Digo "involuntariamente" porque por volta de 2018 acompanhei uma mudança que afetaria o seu serviço de email: os servidores próprios seriam desligados e substituídos pelo Google Edu, um serviço educacional do Google. No mínimo o email foi afetado; a extensão dos efeitos, desconheço.

Ora, desde o Wikileaks sabe-se que o Google tem relações promíscuas com o governo dos EUA e que não respeita a confidencialidade das correspondências dos seus usuários. Assim, as estaduais paulistas fizeram duas coisas calamitosas ao mesmo tempo: privaram os alunos interessados em informática de um importante instrumento de aprendizado (os próprios servidores) e acabaram com o sigilo dos cientistas. Em tese, as estaduais paulistas produzem pesquisas importantes, e em tese pesquisas importantes, capazes de gerar patentes, contêm informações sigilosas. Na prática, o e-mail dos cientistas de São Paulo está ao alcance de Fauci e demais artífices da covid.

Mas se os EUA são a origem de uma grande parte do problema de espionagem e de ameaça à soberania, ao menos de lá vem também uma boa parte da solução: Richard Stallman, notório criador do GNU (popular e erroneamente chamado de Linux) e das licenças de software livre. Anos atrás, já neste jornal, tratei da história recente das três maiores opções para computadores de mesa (Microsoft, GNU/Linux e Apple) e das duas maiores opções para computadores de bolso (o iPhone, da Apple, e o Android, que é um Linux do Google). Modéstia à parte, acho "Do Windows ao Linux, o que você precisa saber para escapar das Big Techs" um bom texto para leigos tomarem pé da história recente da informática em nossas casas.

No próximo texto, continuo o assunto.

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