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Irmão Lázaro
Irmão Lázaro| Foto: Reprodução

Morreu Irmão Lázaro, outrora conhecido na Bahia como Lázaro do Olodum. Como o Nordeste é a última região em que os católicos são majoritários, e como o Olodum foi um sucesso acachapante nos anos 90, com direito até a aparecer em clipe de Michael Jackson, todo mundo que não nasceu ontem conhece a canção I miss her. Teve clipe, o que era uma coisa luxuosa nos anos 90. Lá vemos um alegre rapaz preto de bigodinho a passear pelo Centro Histórico de Salvador e consultar baianas sobre os pensamentos da amada. Depois de se converter, fez a versão Eu sou de Jesus, mantendo a melodia.

Em 2018, o nome de Lázaro, agora Irmão Lázaro, se tornou outra vez conhecido por toda a Bahia como político. Ele integrou a oposição ao petismo enquanto se estranhava com o carlismo. Carlismo é como chamamos aqui o movimento personalista e estético em torno da figura de ACM, que era a um só tempo mestre do maquiavelismo e da propaganda. Hoje acontece de o líder do DEM e o líder do carlismo serem a mesma pessoa: ACM Neto.

O carlismo é um tradicionalismo

Quem quiser ver como é a propaganda carlista clássica pode clicar aqui. É a unção de ACM como a figura que encarna a alma da Bahia e devota sua vida à Bahia, ficando implícito que a Bahia é um lugar sagrado com uma cultura sagrada. Mães de santo e igrejas católicas são figuras nada excludentes; em vez disso, fazem parte da religiosidade mais tradicional da Bahia, que consiste em identificar os orixás com os santos durante as procissões, e fazer uma missa estritamente católica após entrar na igreja.

Os fiéis não veem contradição entre dar flores a Yemanjá e ir à missa, porque os deuses africanos aqui se organizaram em panteão, e o panteão foi como que adaptado à religiosidade católica por meio da identificação com os santos. Isso não é exclusividade baiana: a Igreja atuou assim na Idade Média para absorver o paganismo. Rituais como o São João têm origem pagã e foram cristianizados por meio da veneração dos santos, coisa que não é bíblica e os protestantes cortaram. O carlismo é tradicionalista.

Se você tiver clicado, ouvirá a voz do ex-integralista Vinícius de Moraes cantando “Por céus e mares eu andei/ Vi um poeta e vi um rei/ Na esperança de saber o que é o amor”, enquanto uma câmera, numa tecnologia muito inovadora em 1990, saía sobrevoando a Cidade da Bahia nas suas paisagens mais inebriantes. Pegado o gancho dos versos de Vinícius, entra a voz do locutor falando de poeta e rei, a sugerir a identificação entre ambas as figuras e ACM. Ainda no reino das letras, o locutor fala de Jorge Amado, artista baiano admirado em todo o mundo. Lê então a elogiosa carta do comunista Jorge Amado a ACM.

A Igreja Católica antiga, barroca, e o carlismo, têm em comum o apelo à beleza como forma de conversão. A Bahia é conhecida pela sua beleza e pelos seus artistas. Fica implícito que a beleza, e não nada de econômico ou utilitário, é o que move os homens e as nações. E que ACM é bom porque ama a beleza da Bahia acima de qualquer coisa.

Os baianos chegaram a votar em Lula e ACM ao mesmo tempo, e Lula só se elegeu quando arranjou marqueteiro baiano, que, antes de Bolsonaro, era item obrigatório em campanha presidencial bem sucedida.

A meu ver, isso é um indício de que esse nacionalismo amante do belo, esse voto alheio a questões materialistas, é algo disseminado pelo Brasil, ainda que as capitais do Sudeste, cheias de imigração europeia do séc. XX, sejam como umas tampas de panela tentando tapar essa fervura. O resto do Brasil tem uma cabeça pré-moderna, mais visível na Bahia por haver aqui uma elite alheia às influências culturais da imigração.

Lázaro, um estranho no carlismo

Em 2018, Lázaro se junta aos carlistas para tentar tirar o PT da Bahia. Ele tenta ser Senador e apoia Zé Ronaldo, que largara a prefeitura da segunda maior cidade da Bahia, Feira de Santana, para concorrer a governador. Zé Ronaldo era do DEM, e ACM Neto já era presidente do partido. Os jornais baianos noticiavam que tanto ACM Neto quanto Jaques Wagner queriam fazer seus respectivos partidos apoiarem Ciro Gomes, um tradicional coronel nordestino, ex-filiado do PDS (ex-ARENA).

ACM foi governador da Bahia pela ARENA quando tinha ARENA, e depois pelo PDS, quando virou PDS. Não é nada estranho que ACM Neto se alie a Ciro Gomes. Comparações entre o desenvolvimentismo do PT e dos militares estão manjadas, de modo que tampouco é de admirar que o PT baiano queira se aliar com Ciro Gomes. De cair o queixo é que Ciro Gomes seja aceito hoje pelos acadêmicos como um esquerdista.

Nem Wagner conseguiu puxar o PT para Ciro, nem ACM Neto conseguiu puxar o DEM. Em vez disso, o presidente do DEM apoiou Geraldo Alckmin e prometeu-lhe palanque na Bahia. A Bahia oposicionista ficaria assim: Alckmin presidente, Zé Ronaldo governador, Jutahy Magalhães (sem parentesco com ACM) e Irmão Lázaro no senado, este prometendo atrair voto evangélico.

Esta foi a primeira vez em que o carlismo pôs uma liderança evangélica na sua chapa. O PT já fazia isso havia bastante tempo, sobretudo com o Pastor Sargento Isidório. Como Irmão Lázaro não era filiado ao DEM, ficou livre para apoiar Bolsonaro.

No fim das contas, se bem me lembro, Zé Ronaldo acabou frequentando o palanque de Irmão Lázaro, que a seu turno apoiava Bolsonaro. Num dado momento, em pleno debate televisionado, Zé Ronaldo declarou seu apoio à candidatura de Bolsonaro. Surpreendeu ACM Neto e os marqueteiros da própria campanha. Depois disso, passou a subir no trio elétrico eleitoral de Irmão Lázaro, onde ambos discursavam para uma multidão vestida de verde e amarelo, em apoio a Bolsonaro. ACM Neto ficou de joão-sem-braço pelo resto da eleição.

Em 2018, os carlistas perderam todas. Mas, se tivessem ganho, teria sido a primeira vez desde a redemocratização que a Bahia mudaria de lado ao mesmo tempo que o Brasil. O normal é a Bahia mudar depois, na eleição seguinte. Em 2020, o carlismo comemorou o ganho tomada de prefeituras importantes que estavam na mão dos aliados de Wagner, e não sofreu perdas nessa seara.

O barroco evangélico

Como estética importa muito, procurei me inteirar da música de Irmão Lázaro já convertido. Videoclipe é melhor para isso, então vamos de Quem era eu, com quase 13 milhões de visualizações no YouTube.

Tal como I miss her, o cenário é o Centro Histórico de Salvador. Desta vez, porém, não constam as crianças alegres correndo pelo Pelourinho e brincando em casa. Há drogas; há famílias destruídas e rodinhas de adolescentes experimentando maconha. Lá no alto, aparece a imagem da Igreja, luminosa, sobre um mundo escuro e sinuoso. Temos luz e sombras, tema tipicamente barroco. Retratado, ainda por cima, num lugar de arquitetura barroca, com igrejas barrocas.

A música começa com Lázaro falando, entram um piano e um violino trágicos. Muda para um berimbau, chega-se a uma batucada triunfal. A letra: “Quem era eu/ Servo do pecado/ […]  Escravo do pecado/ […] Ovelha perdida precisando de Deus.// […] Eu me droguei, me viciei/ Mas o amor de Deus me arrancou dali/ E hoje estou aqui”.

O tema do homem afundado em pecado que encontra na salvação a prova do amor de Deus é profundamente barroco. Já anunciava Gregório de Mattos, naquelas mesmas ruas: “Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,/ Da vossa alta clemência me despido;/ Antes, quanto mais tenho delinquido,/ Vos tenho a perdoar mais empenhado.// […] Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada”.

Aqui o letrado poderá dizer que estou indo longe demais ao juntar o evangélico Irmão Lázaro no mesmo balaio do grande Gregório de Mattos. Apontará que crente é ex-tudo, até ex-aidético. De minha parte, respondo que as banalidades são de suma importância. Compare o puritanismo dos evangélicos dos Estados Unidos ao brasileiro que proclama aos quatro ventos os próprios pecados, e que até inventa uns pecados a mais, porque é bonito mostrar provas do amor de Deus.

No fundo de todo crente hiperbólico brasileiro há um Gregório de Mattos. Realce as suas sombras para exibir a luminosa mão de Deus, que veio dar uma prova de amor por meio da salvação. Quanto mais provas, melhor; daí a multiplicação retrospectiva dos pecados.

Fake news carniceira contra o preto crente, pode

No sábado, a filha de Lázaro anunciou a sua morte por covid-19. No mesmo dia, o blog petista Diário do Centro do Mundo (DCM) deu a manchete “Bolsonarista Irmão Lázaro morre de covid após dizer que quem pega a doença ‘é do diabo’ ”. Toda a vida da pessoa cabe num único adjetivo (bolsonarista), e esse adjetivo lhe dá pena de morte sofrida.

No corpo da matéria, a afirmação de que “dias antes de ser internado, fez um culto em uma igreja lotada de Feira de Santana e garantiu aos fieis que crentes não pegavam covid-19. Quem pega ‘é do diabo’, disse.” Nenhuma prova é apresentada. Havia uma igreja lotada, mas ninguém filmou. Como o jornalista do DCM soube? Têm fontes internas em cultos de Feira de Santana?

A pseudomatéria traz outra “denúncia”. (Quem achou que era uma boa ideia um obituário denuncista?) Ele afirmou que gays devem ser olhados como gente, em vez de se exaltarem minorias. Se o DCM acha que olhar alguém como gente é um absurdo, entende-se por que têm olhos de urubu e olham  para Irmão Lázaro como carniça.

Desta vez, a “denúncia” é provada. Irmão Lázaro diz que os homossexuais devem ser olhados como gente, e que o Brasil deve se unir a despeito de diferenças. Fiquemos com esses votos de Irmão Lázaro.

Atualização

O texto foi atualizado: o termo "adoração" dos santos foi alterado para "veneração"

Atualizado em 23/03/2021 às 10:35
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