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bicentenário da independência
Festa de Dois de Julho na Bahia, em 2019. Ao fundo, a imagem do caboclo da Independência.| Foto: Manu Dias/GOVBA

Em Salvador, existe um dia do ano em que eu era acordada pelo poder público às 6h em ponto: o 7 de Setembro, quando o Exército toca uma estridente corneta para anunciar o desfile da Independência. Um desfile normal de Sete de Setembro, que creio ser igual no país todo. Agora lastimo nunca ter morado adulta no trajeto das festividades da outra data de Independência: o 2 de Julho. Em 2 de julho de 1823, as tropas portuguesas foram definitivamente expulsas da Bahia. Por isso, é a data magna do estado. Todo baiano que se preze, seja de direita ou esquerda, se enfurece com o atual nome do aeroporto, que era Dois de Julho até o ACM velho rebatizá-lo com o nome do filho morto, colocando ainda um monumento mortuário com o seu coração na avenida de acesso. O PT se elegeu, mas não restaurou o nome, e ainda inventou a fake news de que aeroporto internacional não pode mudar de nome por causa de um código definitivo. Mas o código internacional do nosso aeroporto é simplesmente SSA.

Na cidade do meu novo endereço, Cachoeira, não é possível computar ao certo em quantos dias o poder público ou eclesiástico (que não são muito fáceis de distinguir) acorda o cidadão às 6h em ponto. Não há corneta; são fogos. E se não houver fogos às 6h da manhã em razão de alguma data comemorativa, pode havê-los às 6h da noite, ou depois disso, sobretudo se for missa. Quando há foguetório não-identificado, abro o stories do WhatsApp para ver se os católicos praticantes postaram imagem de santinho. Muitas vezes mata a minha curiosidade; ainda assim, resolvi que era mais fácil aceitar que o foguetório ocasional é parte do ambiente, e que nunca vou conseguir gravar todo o calendário comemorativo.

Mas quando acordei às 6h com o foguetório no dia 25 de junho, eu sabia muito bem do que se tratava, pois na verdade estava esperando por isso e até tinha chamado amigos para ver a festa: a data magna de Cachoeira. Desta vez, o 25 de Junho era especial, pois era o Bicentenário da Independência.

Resumo histórico

Antes de D. Pedro dar o brado do Ipiranga a 7 de Setembro de 1822, a Bahia enfrentava perturbações militares havia meses. Com o retorno da Corte para Lisboa, Portugal pretendia devolver o Brasil à condição de colônia, enviando desde a Metrópole interventores militares para substituir os governos das províncias (que são chamadas de “estados” desde a república) e governar por decreto, desconsiderando as instâncias legislativas eleitas pelos brasileiros. Em virtude disso, a Câmara de Salvador pretendia reconhecer o Príncipe D. Pedro, do Rio de Janeiro, como Regente do Brasil. O Exército português barrou os caminhos para a Câmara (que fica ali junto do Elevador Lacerda) e impediu a realização da sessão. Os conflitos entre soldados baianos e portugueses escalaram em fevereiro, quando surgiu a primeira mártir da Independência: a Abadessa Joana Angélica deixara os soldados baianos se esconderem no convento e, quando o Exército português pediu para entrar, ela não deixou. Segundo os cronistas, ela teria dito que só entrariam passando por cima do seu cadáver. De fato, ela foi lanceada e morta. Aí o clima esquentou.

Com Salvador tomada, os agitadores soteropolitanos saíram da península e migraram para o outro lado da Baía (ou Golfo) de Todos os Santos – onde está Cachoeira. Articularam-se para a Câmara daqui, em vez da de Salvador, aclamar o Príncipe D. Pedro como Regente do Brasil. Conseguiram fazer isto em 25 de Junho de 1822, portanto ainda antes de 7 de Setembro. Não era propriamente uma declaração de independência – já que D. Pedro seria Príncipe Regente do Brasil, posto hierarquicamente inferior ao de D. João VI, Rei de Portugal, Brasil e Algarves. Era um jeito de conservar a autonomia do Brasil herdada desde tempos coloniais (quando as cidades e vilas elegiam suas câmaras legislativas e seus alcaides) e de resistir ao Absolutismo moderno no qual Portugal embarcava. De todo modo, é um bom marco para um pontapé inicial da Independência.

Cachoeira também tem o seu mártir: o “Tambor Soledade”. Segundo os cronistas, um negro tamborileiro de nome Soledade, ao ver os navios portugueses se aproximarem da vila, saiu correndo com o seu bumbo para tocar na praça e avisar da aproximação das tropas. Logo após lograr êxito, morreu atingido por uma bala de canhão disparada por um navio português. Uma longa batalha se estendeu pela banda ocidental da Baía de Todos os Santos até culminar na expulsão das tropas portuguesas de Salvador, a 2 de julho de 1823. O movimento baiano pela Independência é, portanto, ao mesmo tempo anterior e posterior ao Sete de Setembro. Se a guerra da Bahia fosse perdida, o Brasil não manteria sua unidade territorial e Portugal teria um forte ponto de apoio para reconquistar o Sudeste brasileiro.

Celebrações tradicionais

No Rio de Janeiro, personagens do Dois de Julho dão nome a uma porção de logradouros em Ipanema, que pôs as explicações históricas nas placas de rua para o pedestre ler. Ainda assim, nem os residentes da área sabem desses acontecimentos. Em Salvador o Dois de Julho é parte do folclore. Todos ouviram a história apócrifa do Corneteiro Lopes dentro de casa, crianças, além das oficiais. O Movimento Negro inventou ou aumentou uma Maria Felipa, de Itaparica, e enfia-a no panteão de heróis da Independência. No entanto, uma figura anônima recebe tratamento quase religioso por parte da multidão: o Caboclo. Além de desfile militar e, digamos, paramilitar (pois os Encourados, vaqueiros do município do Pedrão que lutaram na Independência também estão representados, ainda que o ativismo judicial lhes encha o saco), o desfile do Dois de Julho é ao mesmo tempo uma procissão em que uma estátua de caboclo é carregada sobre a multidão, em meio à qual contam-se pessoas que acreditam nas propriedades mágicas da imagem laica. O Caboclo simboliza o povo brasileiro que triunfou sobre os portugueses.

Em Cachoeira, também há desfiles com o Caboclo seguido pela multidão. Mas a festa é um bocado mais complexa, e se mistura ainda com outra comemoração importantíssima nesta parte do país, que é o São João (24 de junho). De todo modo, há uma Cabocla em São Félix, a qual o Caboclo de Cachoeira vai encontrar, e ambos terminam expostos em Cachoeira por um período. As comemorações da Independência são outra coisa com a qual me conformei em não apreender por completo. Também não há nenhuma divulgação oficial dos detalhes, porque presume-se que “todo mundo” sabe. Vocês podem ver o Caboclo e a Cabocla defronte da Câmara e atrás do Mastro. Há outro mastro na cidade, o Pau da Bandeira, que as pessoas também saem carregando por aí por ocasião das comemorações da Independência.

A Cabocla de São Félix e o Caboclo de Cachoeira expostos no dia 26 de junho. Acervo pessoal.
A Cabocla de São Félix e o Caboclo de Cachoeira expostos no dia 26 de junho. Acervo pessoal.

Festa escondida

Os leitores hão de desculpar a dispersão do texto. É que o Bicentenário quase não foi notícia fora de Cachoeira; no máximo, a imprensa baiana, muito restrita a Salvador, noticiou a criação de um selo comemorativo por parte da prefeitura, com participação de Rui Costa. A Folha fez uma matéria histórica e, ao que parece, só a imprensa pública estadual enviou gente para cobrir o evento. Assim, para não passar em branco, tenho de contar que houve. Devo de antemão esclarecer que não se trata de uma prefeita ideológica, até porque a esfera da ideologia aqui é muito limitada. A prefeita é do partido da Igreja Universal (Republicanos) e é de uma família de pastores de um lado e de gente do candomblé de outro. Não há briga. Prefeitos de interior gostam de sinalizar proximidade com o máximo de figuras importantes possível. Vi-a fazer isso com as seguintes figuras: o Bispo Márcio Marinho, deputado federal da base de Bolsonaro; Fabíola Mansur, deputada estadual da base do governador Rui Costa; o próprio Rui Costa e o Ministro João Roma. Quanto mais ecumênico se revelar um prefeito do interior, melhor, porque aumenta as chances de trazer “melhorias para a região”.

Dito isso, devo lastimar que o governo federal tenha perdido mais essa oportunidade de marcar presença e de homenagear o Bicentenário da Independência do Brasil. No ano passado inteiro, Josias Teófilo cobrou em público as comemorações do Bicentenário. A dupla de tuiteiros Frias e Porciuncula (este, baiano, ciente da importância ao menos do Dois de Julho) passou o ano passado inteiro fazendo juras. Agora tudo foi esclarecido: comemorar dois séculos é bobagem, já que Ratanabá tem 450 milhões de anos.

Caso o leitor tenha mais o que fazer e não se inteire de Frias, eu explico. Depois de sair da Secretaria da Cultura para concorrer a deputado federal, Frias divulgou seu encontro com um pesquisador de Ratanabá, que é ninguém menos que o ET Bilu e defende que a terra não é plana, mas sim um disco convexo. Seu instituto Dakila provaria, entre outras coisas, a existência de Ratanabá. Se não fosse desgraça bastante, o ET Bilu ainda defendia que o Iphan quer roubar a Amazônia do Brasil. Esse tipo de coisa dá vontade de votar no PCO.

A presença federal se fez marcante quando a Polícia Federal apreendeu o licor dos mais tradicionais fabricos da cidade às vésperas do São João. Justo no ano em que o governo do estado resolveu transformar o licor de Cachoeira em patrimônio imaterial, a Polícia Federal apreendeu a produção sob a alegação de que não tinham engenheiros químicos, entre outras coisas. A cidade só falava disso e estava revoltada. O licor é a bebida típica do São João.

O que eu vi

Ao menos Cachoeira cuidou do Bicentenário. Acordei com os fogos às seis da manhã e mais tarde, ao ouvir a banda do Exército, fui à Praça da Aclamação, onde fica a Câmara, que está há um bom tempo arrodeada por bandeiras de todos os estados da federação. Foram executados hinos à presença de autoridades locais, com militares em posição de sentido. Compareceu uma cavalaria que os meus amigos estão certos de ser os Dragões da Independência. Ei-la:

Cavalaria saindo da frente da Câmara para se dirigir à Matriz. Acervo pessoal.
Cavalaria saindo da frente da Câmara para se dirigir à Matriz. Acervo pessoal.

Findos os hinos, o locutor convida os militares e a sociedade civil a se dirigirem à Igreja Matriz onde seria celebrado o Te Deum. A Igreja estava toda ornada por dentro com bandeiras dos estados da federação. A celebração durou bastante, deu tempo de esperar os amigos em casa. Quando chegava com eles, avistávamos o sacerdote sair à porta balançando o turíbulo de prata cheio de fumaça e dar meia volta (do lado de fora estavam os cavaleiros montados). Lá entrando, ouvimos um coro cantava ao som do órgão, ambos (coro e órgão) situados no alto, acima da porta. Um dos meus amigos cantava em coro antes da pandemia e diz que para a Igreja deixar o coro ficar lá em cima é a maior dificuldade, ao menos lá em Porto Alegre. É curioso, pois as igrejas foram projetadas para isso e a acústica é excelente.

Igreja Matriz durante do Te Deum. Acervo pessoal.
Igreja Matriz durante do Te Deum. Acervo pessoal.

Findo o Te Deum, as autoridades voltaram à Câmara, aonde Rui Costa foi discursar. Havia caixas de som na Praça da Aclamação reproduzindo o seu discurso, mas ninguém foi atraído até a praça. Pela movimentação policial, soubemos que ele iria inaugurar o ancoradouro. Não vimos isso acontecer, pois fomos a um distrito rural almoçar perto das ruínas do Convento de São Francisco. No distrito tudo parecia normal.

Na volta, foi difícil chegar à minha casa. A cidade estava entupida de carros e gente. O carro foi estacionado longe e no caminho cruzamos com a parada, bem na hora em que o Caboclo passava carregado. Seguiram-se as filarmônicas da cidade (há duas do século XIX), a banda do Exército (há um Tiro de Guerra na cidade) e estudantes, que arrancaram aplausos da multidão. Eu sei que esses estudantes passaram meses ensaiando, pois treinavam pela cidade, inclusive dando a volta no meu quarteirão com suas batucadas e cornetas (era mais um fenômeno inexplicado ao qual eu já tinha me acostumado).

Na frente da Igreja, colocaram-se estes dizeres comemorativos. Ao lado há outra placa no mesmo formato, resgistrando o Te Deum de 25 de junho de 1922. Acervo pessoal.
Na frente da Igreja, colocaram-se estes dizeres comemorativos. Ao lado há outra placa no mesmo formato, resgistrando o Te Deum de 25 de junho de 1922. Acervo pessoal.

É isto: o Bicentenário foi festejado e lembrado por uma cidade interiorana, a despeito do desinteresse do governo federal. O São João foi dito São João do Bicentenário; o Bicentenário foi disputado a tapa pelo Executivo e pelo Legislativo municipais, com seminários concorrentes; o Exército nos prestigiou e até o governador – que tinha passado anos sem vir, apesar de Cachoeira ser capital da Bahia durante o dia 25 de junho – deu as caras.

Demos a sorte de ter um governo federal patriótico no ano do Bicentenário. Mas este nos faltou, porque a Cultura ficou na mão de dois tuiteiros ignorantes, que acham que o Iphan está em conluio com a ONU para roubar a Amazônia e por isso esconde a Civilização de Ratanabá, revelada pelo ET Bilu. O lado bom é que o Brasil tem uma cidade que independe de comando federal para manter acesos os sentimentos patrióticos da memória nacional.

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