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O advogado Renato Freitas. Foto: Divulgação/Acervo Pessoal.
O advogado Renato Freitas. Foto: Divulgação/Acervo Pessoal.| Foto:

O advogado Renato Almeida Freitas Júnior foi abordado pela polícia no último domingo (30) nas imediações do estádio Couto Pereira. Renato diz que não foi a primeira abordagem que sofreu e que o motivo é sempre o mesmo: racismo.

O advogado conta que foi atender um cliente quando tudo aconteceu. Quando era candidato a vereador nas eleições de 2016, pelo PSol, ele passou por uma situação do mesmo gênero. Freitas Júnior foi o candidato mais votado do partido em Curitiba com mais de 3 mil votos.

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Formado em direito pela UFPR em 2012, ele terminou o mestrado na mesma instituição neste ano. Ele fala sobre outras situações que marcaram sua vida.

Aconteceram outras abordagens que você considera terem sido por preconceito?

Foram várias. Quando fui fazer o concurso da Defensoria Pública precisava pegar o certidão de antecedentes criminais. Tenho indicativos por desacato, mas não tenho nenhuma passagem, nada. Vi que todos os outros que iam participar conseguiram tirar na hora, o meu levaria cinco dias. Alguma coisa errada tinha. Falei com um amigo policial civil. Ele conferiu e disse que provavelmente eu tinha uma “ficha interna” utilizada somente entre os policiais. Nesta ficha constava uma abordagem no Cabral.

O que aconteceu no Cabral?

Eu fazia Ciências Sociais em 2004 e estava no terminal do Cabral com minha mochila nas costas. Umas 18h o policial chegou na plataforma e me abordou: “mão na cabeça”, no meio de um  monte de gente. A plataforma estava molhada por conta da garoa, o policial não estava em uma viatura, ele veio da banquinha. Eu fiz cara de poucos amigos, estava evidentemente sendo discriminado, imagine, era eu no meio de uma plataforma lotada sendo abordado sozinho.  Ele abriu minha mochila e jogou tudo no chão, molhou meu caderno. Ele me deu um tapão no rosto. Ele deu uma geral em tudo, em mim e na mochila e não achou nada. Pediu para eu tirar o tênis, falei que [o chão] estava molhado, ele me deu um soco, como quem diz “vou continuar”. Tirei o tênis, bati ele no chão como policial pediu, tireis as palmilhas, bati as duas.

Qual foi sua reação?

Fiquei olhando pra frente, pra baixo, bravo e triste ao mesmo tempo. Nem imagina responder ou fazer algo. Ele ficou me olhando e me mandou tirar a meia, falei outra vez que o chão estava molhado, já estava com a meia molhada. Eu estava com muito ódio, muito ódio mesmo. Eu era um moleque em 2004 a única coisa que poderia fazer para afrontar foi tirar e cheirar a meia como quem diz “está fedido” e jogar no chão. O policial me prendeu por desacato, me algemou, chamou a viatura, me levou para um canto na rua e me deu várias porradas. Me levou no 3º distrito e lá ninguém deu muita atenção para ele. Logo depois dele sair me liberaram. Eu achei o cúmulo.

Qual outra abordagem te marcou?

Em 2004 ou 2005 fui até a Cinemateca na semana do dia internacional da consciência negra. Eu fazia parte de uma ONG, o Instituto 21 de março – Consciência Negra e Direitos Humanos. Eles estavam exibindo um filme do Malcolm X. Na saída passei pelas ruínas [do São Francisco]. Um guarda municipal que já tinha me abordado outras vezes, me discriminado e me batido, mas não prendeu porque eu não tinha feito nada, me reconheceu. Ele a mulher que faziam uma abordagem a outro homem, apontaram a arma para mim e começaram a “abordagem”. O homem que já estava de joelhos ao lado dele tinha uma faca enferrujada e uma quantidade grande de maconha. Os guardas pressionavam para saber de quem era a droga, o homem negava e os guardas diziam que se não era dele então era minha. Eles queriam me prejudicar. O homem disse que não poderia fazer o que eles pediam [me entregar]. Olhei para ele e pedi por favor, olha a injustiça que você vai cometer. A guarda bateu com cassetete na minha boca e me mandou ajoelhar, eu dizia que não e ela continuou me batendo. O parceiro dela me deu uma pancada no joelho aí não teve jeito, fiquei de joelho.

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Vocês foram para a delegacia?

Nós dois fomos levados para o 3º distrito. Eu estava bravo, sangrando, sempre fui pobre e de periferia, a reação que eu tinha à polícia era sempre essa de esperar o pior, porque o pior sempre acontecia. Na delegacia me jogaram direto na cela. Por sorte e por Deus, no Instituto 21 de março tinha o soldado Camargo. Ele tinha sofrido racismo dentro da corporação. Um coronel teria falado para o soldado “de preto no meu batalhão eu só gosto do coturno”. Os outros policiais começaram a hostilizar ele. O soldado processou a polícia e então saiu da PM depois de um tempo entrou para o instituto e para o movimento negro. Ele viu o acontecido, na hora em que estavam me prendendo, ele era minha testemunha, me viu na Cinemateca. Camargo foi até a delegacia, nessa época ele ainda era parte da PM, e ele explicou a situação.  Um dos policiais me deu um soco enquanto estava na delegacia que quebrou meu nariz. Sangrei um monte e sujei a cela. Acabou não dando nada, fui liberado porque o soldado Camargo salvou minha vida, se não fosse por ele poderia ter sido condenado por tráfico, talvez não teria me formado em direito.

Qual foi o tema do seu mestrado?

O tema era criminologia, o sistema de “seleção” da polícia, qual o perfil das pessoas presas, como elas se organizam e como elas chegam lá, quem são essas pessoas presa, um perfil mesmo. Estatisticamente falando o perfil é o jovem, de até 29 anos, negro, ensino fundamental incompleto, moradores da periferia de grandes centros urbanos. Ou seja, pessoas como eu. Com o meu mestrado eu pretendia compreender esse processo e produzir teoria a partir disso. É também uma forma de denúncia.

A quais conclusões você chegou com esse estudo?

As prisões se dão por seleções. As seleções primárias dizem respeito a lei em si, o que diz o legislador. O processo secundário opera pela lógica de estereótipos, no sentido de quem a polícia vai prender “para fazer a lei funcionar”. Para simplificar: todos os direitos fundamentais, de se comunicar, de ir e vir, esses direitos chamados liberais, do início da Revolução Francesa, são uma espécie de campo de força entre a gente e o Estado. O Estado só não chega na gente porque esse campo de força não deixa. São as nossas garantias dos direitos humanos. Pessoas  negras, pobres e de periferia não têm esse campo de força. Ninguém nem pensa nos direitos delas. Então é mais fácil para o policial prender alguém que não tem esse campo de força.

A segunda conclusão é a mais destruidora de todas, é o que gera muitas mortes e muitas prisões. O estado prende um monte de gente da periferia e dentro do cárcere não há uma disciplina do estado, não há educação, ele não interfere. A única função é manter os presos ainda presos. Só, ressocializar, educar, nada. O crime em geral e sua forma de organização está muito mais perto das pessoas presas do que o estado e qualquer referência ética. Todos cometem crimes, nem que seja por exemplo, um médico saindo da formatura da filha depois de beber, se ele dirigir por dois quilômetros estará cometendo um crime, mesmo que não seja preso.

Qual é o peso disso para os jovens de periferia?

Um jovem de 12 ou 14 da periferia tem como referência ética, comportamental, a forma de falar, de agir, de se portar no mundo a forma “criminosa”, não criminosa do sentido de cometer crimes. Quem ela vê tendo um “sucesso” dentro da realidade em que ele vive. Que enfrentou a polícia de alguma forma, que é diferente da situação familiar. Ele tem como referência quem tentou a vida de outro modo e eventualmente conseguiu. Então estes jovens, mesmo não tendo passado pelo crime, são vistos pelos policiais como pessoas que carregam o emblema do cárcere. Sabe as estrelas que os judeus carregavam nos campos de concentração? Essa criança carrega a da periferia, vive num enorme campo de concentração e é facilmente identificável. Então desde cedo a polícia sabe a quem perseguir. E isso é um ciclo vicioso, uma profecia que se auto realiza. As pessoas ficam cada vez mais revoltada e excluídas. Depois que ela passa pelo cárcere quando a polícia consegue pegar ela por algum delito, aí nunca mais tem volta.

Como você lida com a revolta e com ódio?

Eu lido sendo absolutamente racional e estratégico. Muitas pessoas lidam com o ódio tentando enfrentar a polícia ou se alistando de vez no exército do crime. Não porque a pessoa necessariamente quer ser criminosa, mas porque ela tem um ódio tão grande da polícia, e o antônimo da polícia é o crime. É uma revolta de séculos, não é de hoje. Eu tento estudar bastante, tento ocupar espaços sociais de poder para que eu ganhe visibilidade, para que as pessoas consigam me ouvir. E para fazer uma denuncia mais efetiva. Porque não dá para enfrentar a polícia.

O fato de você ter entrado para política foi uma forma de enfrentamento?

Foi a melhor forma que eu encontrei. Quando eu comecei a estudar eu vi que o verdadeiro poder é poder institucional. O grande poderoso que manda em tudo isso é o estado. E muitos dos nossos representantes são os piores possíveis. E quem é o chefe maior da Polícia Militar? É o Executivo, é o governador do Paraná, é o presidente. Então se você quer realmente mudar essa instituição tem que disputar esses espaços de poder. E foi a melhor estratégia que eu encontrei.

Você pretende continuar a tentar um cargo na política?

Eu acredito que sim. Mas se eu tiver forças. Eu tive uma crise nervosa [por conta da situação do domingo], não é fácil lidar com isso. Como eu falei não é a primeira vez, nem a décima que eu enfrento esse tipo de coisa. Pode parecer exagero, mas não é. Eu tenho 33 anos e já levei mais de 100 “enquadramentos” na minha vida.

O que você achou da repercussão do depoimento da professora Diva na Flip?

Curitiba é muito triste. Eu achei perfeito, foi um testemunho genuíno de uma pessoa que realmente vivenciou não uma realidade qualquer, mas uma realidade limítrofe. O que fazem com uma pessoa negra desde criança é induzi-la ao suicídio, não o suicídio físico, mas ao suicídio simbólico. Quando você olha no espelho quando criança e não quer ter o teu cabelo, teu nariz, a tua boca, a tua pele. Ou seja, você não quer existir da forma que você existe. Tudo que você quer ser é o outro que não seja você. É se negar em absoluto. A cultura negra é marginalizada. O racismo no Brasil é mais sutil e ataca de várias formas.

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