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A falácia racial de Demétrio Magnoli
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Magnoli

Demétrio Magnoli comete uma falácia no artigo que publica nesta quinta-feira em vários jornais, inclusive nesta Gazeta do Povo. Diz ele que o projeto apresentado recentemente no Congresso Nacional prevendo a reserva de vagas no Parlamento para negros revela a verdadeira face do “racialismo” (esse é o termo que ele usa) no Brasil. Mostra que o discurso usado até então, de que as políticas afirmativas raciais servem para compensar diferenças históricas de tratamento para pessoas de etnias diferentes, não passava de uma mentira.

Magnoli vai longe em seu argumento. Na sua versão, desde o princípio o plano dos “racialistas” era dividir i país em dois. E que o projeto que prevê representação étnica no Congresso é um novo passo rumo a uma Constituição que defina o Brasil como um país binacional. “Digam aos brasileiros que vocês não querem direitos iguais e oportunidades para todos numa república democrática, mas almejam apenas a condição de líderes políticos de um movimento racial”, afirma, exortando os “racialistas” a “tirar suas máscaras”.

Segundo o texto, o caso do Brasil é bem diferente dos Estados Unidos, onde havia leis de segregação, com um racismo, digamos, institucionalizado. No Brasil, o que existe é uma mestiçagem que, pelo que dá a entender o articulista, acabou com uma divisão clara entre brancos e negros. Qualquer divisão deste tipo é falsa e imposta de cima para baixo, com o propósito de dividir para conquistar.

O argumento como um todo é falso de várias maneiras. Começando pelo mais óbvio. Magnoli nunca sentiu na pele o preconceito real que há contra os negros. Não se trata de criticá-lo por isso, obviamente. Mas quem é descendente de negros ou é negro sabe que a divisão que existe no Brasil pode não ser institucionalizada, como realmente foi nos Estados Unidos, mas é igualmente cruel com o “diferente”, com o pardo, com o preto. Negar isso é negar fatos registrados dia a dia em todo o país.

Aqui nunca houve apartheid formalizado nem segregação oficial depois da Abolição, verdade. Há a mestiçagem, é fato. Mas daí a negar que haja pessoas que são tratadas diferentemente em razão de sua cor de pele vai uma grande diferença. Magnoli, mais velho do que eu, certamente se lembrará que foi necessário proibir nos anúncios classificados a exigência de que o candidato tivesse “boa aparência” – um código nem tão secreto para impedir negros de se candidatarem. Era um aviso de que seria uma perda de tempo.

Mesmo com essa proibição, estudo atrás de estudo mostra que os negros ganham menos em seus empregos do que os brancos. Assim como são maioria nos guetos e nas favelas do país – ao contrário do que ocorre nos bairros de classe média alta. Sem contar as humilhações, as piadas, a perseguição que sofrem todo santo dia. Nada disso pode ser desprezado simplesmente pelo fato de não decorrer de uma lei escrita avalizada pelo governo.

Mas, indo ao ponto. O projeto que prevê vagas para negros no Parlamento é mesmo terrível. A ideia de livre representação fica abalada, para dizer o mínimo. E não há nem comparação com a situação usada como exemplo pelos defensores da proposta. Eles dizem que em outros países há cadeiras específicas para índios, por exemplo. Mas trata-se de índios que vivem em comunidades isoladas. Faz sentido que eles tenham representantes seus, que conheçam seus problemas, vivam seu dia a dia e tenham como votar pensando neles. Não é o caso das etnias minoritárias brasileiras (ou até poderia ser no caso de indígenas, mas não de negros).

No entanto, o fato de uma proposta ir longe demais não quer dizer que todos os que defendiam a parte menos radical do programa sejam extremistas. Nem todo mundo que quer algo quer aquilo em grau extremo. É como dizer que todo capitalista é libertário ou que todo mundo que quer um pouco de igualdade é comunista. Os “racialistas” radicais não podem invalidar as demais propostas em favor dos afrodescendentes, se elas forem razoáveis. Não há um “programa” unificado, nem gente se reunindo em porões secretos para dividir o país em dois, conforme parece supor Magnoli.

E propostas em favor de desfavorecidos historicamente nada têm de radicais, nem têm o condão de dividir o país por si sós. Não se trata nem de ser a favor ou contra as cotas raciais em universidades, por exemplo. Pode-se ser a favor ou contra as cotas e isso não significa ser “racialista” nem ser “racista”. Interditar o discurso com rótulos ou dramalhões falsos não ajuda em nada.

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