• Carregando...
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro
| Foto:

rappa

Caro Paulo,

Gosto do debate público. Você também. Foi por isso que escolhemos nossa profissão, certo? É com a discussão de ideias que saímos do senso comum e chegamos a algum lugar mais produtivo. Pois bem, tuas duas últimas colunas me incitaram a responder. Como você, me interesso por cultura e política. Como você, também não ouço O Rappa nem Gabriel O Pensador. Simplesmente não são para mim, não gosto. Mas divergimos em uma porção de outras coisas que considero importantes. Vamos a elas.

A primeira observação é que, embora eu seja um democrata e, desse ponto de vista repudie tanto o maoísmo ou o stalinismo quanto o nazismo, acredito que sejam coisas bem diferentes. Não era à toa que Hitler odiava os bolcheviques, mas isso é assunto para outra discussão. Só acho que você misturar alhos com bugalhos, fazendo uma gororoba em que tudo é “esquerda” (e em que toda esquerda é antidemocrática) não ajuda a gente a entender nada. Só complica e confunde.

Mas esse ainda não é o ponto. O ponto é que me parece que você começou a escrever essas colunas por ter visto uma frase pichada no muro e por estar indignado com a prova que cobrou dos alunos uma análise de Gabriel O Pensador. A frase dizia: “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. E você acha isso desrespeitoso com os escravos, que não eram bandidos (pelo menos não só pelo fato de serem escravos).

A história da crítica ao vestibular e ao Enem vem a seguir. Você diz que ao invés de colocar grandes poetas na prova, preferiram um rapper xexelento com pouco a dizer e que, além de tudo, se entendi bem, ofende a tua teologia entre outras coisas. Podiam usar Manuel Bandeira, Drummond, Vinícius, Paulos Henriques Britto, diz você (nenhum dos quais, que eu saiba, era ou é de direita, mas deixemos isso de lado).

Como são duas as críticas, respondo também em duas partes. Vamos primeiro ao que diz respeito à escolha do texto para a prova. Longe de mim comparar Gabriel O Pensador, em qualidade, a qualquer dos poetas que você citou. Não se trata disso. Mas por que a prova não poderia cobrar uma análise do trecho? Por que não é a melhor poesia que temos? Antes de mais nada: quem pode julgar isso? Mas, deixando isso de lado: era isso o que se queria?

Veja só, Paulo. Em primeiro lugar, esse negócio de achar que existe “arte degenerada” é um troço perigoso para burro. Digita lá “Entartete kunst” no Google e veja quem defendia isso. Tudo o que era arte moderna era repudiado justamente pelos regimes de força que você (com justiça) critica no teu segundo texto. Na Alemanha nazista a arte só era vista como séria se respeitava certos valores postos em alta conta pelo regime. O mesmo nos regimes comunistas (sim, isso eles tinham em comum).

Arte não é algo que podemos julgar simplesmente a partir de nossos valores morais. Ela tem outro sentido, pertence a outra esfera. Claro que podemos criticar o que um artista diz, e às vezes devemos. Mas simplesmente considerar que o conteúdo vai contra nosso ideário não é suficiente para tirar todo o valor da coisa, entende? Eu, por exemplo, tenho três tipos de medo de Wagner. Mas que aquilo é boa música, não dá pára negar. (Não estou comparando rappers a Wagner, apenas falando sobre o que é arte…)

Veja bem: se formos levar isso a ferro e fogo, logo haverá um index (e essa palavra deveria nos provocar arrepios, mesmo sendo ambos católicos) de músicas que podem ou não tocar no rádio – já que queremos fazer uma lista do que pode ou não ser estudado e “levado a sério”. Lutamos, eu e você, pela liberdade de expressão. Por isso não podemos querer que alguém de fora diga o que um jornal pode ou não publicar. Da mesma maneira, não quero que alguém de fora (nós, por exemplo), diga o que uma rádio pode tocar ou o que uma prova pode cobrar.

Aí você vai me dizer que o problema não é a arte em si, mas sua exaltação pela academia. A intenção da prova, me parece, não é essa. Ninguém pediu (muito menos exigiu) loas ao texto nem a seu autor. O que se queria era uma análise. Não é uma pegadinha do tipo “responda como eu quero ou será reprovado”. Se o sujeito fizer uma crítica ácida ao texto, por que não será aprovado? Desde que tenha entendido, desde que tenha o que dizer?

E chegamos aí à pichação do muro. Você diz que aquilo ofende os escravos. Não é assim que eu leio a frase. Me parece que a intenção do pichador (e não estou defendendo a pichação, nem essa nem qualquer outra) era acusar a polícia e a sociedade de racismo. Os negros, os descendentes de escravos, continuam sendo tratados como inferiores e sendo levados como clientes preferenciais do camburão. A ideia não era, penso eu, acusar os escravos de bandidos; pelo contrário, era dizer que seus trisnetos estão sendo erradamente considerados suspeitos de bandidagem. Era um desagravo aos negros, não ao contrário.

E era isso, penso, que se queria cobrar na tal prova. Interpretação de texto.

Você tem a tua. Eu tenho a minha.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]