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O papa Bento XVI durante visita ao Brasil, em 2007.
O papa Bento XVI durante visita ao Brasil, em 2007.| Foto: Rodolfo Buhrer/Arquivo Gazeta do Povo

Bento XVI, o papa da cultura e da racionalidade, terminou sua carreira com umas palavras carregadas de uma fé genuína e profunda: “Não me preparo para um fim, mas para um encontro”. E assim foi.

Relembro aqui sua extraordinária visita ao nosso país. O estereótipo de um papa frio e duro desabou na sua primeira aparição na sacada do Mosteiro de São Bento. Bento XVI transmitiu uma simplicidade que comoveu e cativou.

Sua mansidão, no entanto, não se confundiu com qualquer tipo de ambiguidade concessiva. Numa visita marcada pela força da palavra, o papa falou claro. Diante de multidões de milhares de fiéis, defendeu com veemência a doutrina católica. Apresentou a verdade cristã sem meias palavras. Ao contrário do que alguns imaginavam, talvez aprisionados por certas algemas ideológicas, a exigência amável do papa exerceu forte poder de atração, sobretudo no público jovem.

O estereótipo de um papa frio e duro desabou na sua primeira aparição na sacada do Mosteiro de São Bento. Sua mansidão, no entanto, não se confundiu com qualquer tipo de ambiguidade concessiva. Numa visita marcada pela força da palavra, o papa falou claro

No encontro com milhares de jovens no Estádio do Pacaembu, o papa defendeu a pureza antes do casamento, condenou a infidelidade no matrimônio e não deixou de pedir por mais vocações sacerdotais. Ele também reafirmou que a Igreja não precisa de católicos nominais, mas de católicos capazes de seguir o exemplo de Cristo. O discurso, que durou 40 minutos, foi interrompido várias vezes pelos aplausos do público.

O papa não deixou de falar dos desafios que os jovens enfrentam no mundo moderno, marcado por “um enorme déficit de esperança”, pelo “medo de morrer” e o “medo de sobrar”. A alternativa a isso, sublinhou, é uma plena adesão, de forma convicta e rigorosa, aos mandamentos da Igreja. A resposta dos jovens, surpreendente para alguns, foi uma impressionante ovação.

No momento mais informal e descontraído de sua viagem ao Brasil, o papa encontrou-se com 2,5 mil dependentes de drogas. Emocionado, chamou-os de “prediletos de Deus” e deixou-se tocar, abraçar e beijar. Mas foi duríssimo ao se referir aos traficantes. “Deus vai lhes exigir satisfações”, disse com energia. “A dignidade humana não pode ser espezinhada dessa maneira.” E completou: “O mal provocado recebe a mesma reprovação dada por Jesus aos que escandalizavam os ‘pequeninos’, os preferidos de Deus.” O papa referia-se ao Evangelho de São Mateus (18,6), em que Jesus diz ser preferível prender uma pedra e lançar ao mar os que fizeram mal às crianças. As 7 mil pessoas presentes ao evento interromperam o discurso para o aplauso mais entusiasta do dia.

Bento XVI manifestou clara preocupação com a formação do clero e fez um apelo aos bispos para que tenham o devido discernimento ao avaliar as vocações sacerdotais. Recomendou que se leve em consideração a “dimensão espiritual, psicoafetiva e pastoral” em jovens maduros e disponíveis ao serviço da Igreja. “Um bom e assíduo acompanhamento espiritual é indispensável para favorecer o amadurecimento humano e evita o risco de desvios no campo da sexualidade”, alertou.

No seu último discurso, profundo, racional e sereno, com que abriu a 5.ª Conferência-Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, o papa voltou a algumas de suas teses fundamentais: a importância da identidade do cristão e das sociedades que se formaram à luz de princípios evangélicos. “Quem exclui a Deus do seu horizonte distorce o conceito de realidade e só pode terminar em caminhos equivocados e em receitas destrutivas”, disse. Para ele, o grande erro das tendências dominantes no último século (e que ainda persistem) – erro destrutivo, como demonstram os resultados práticos tanto dos sistemas marxistas como dos capitalistas – foi a falsificação do conceito de realidade com a amputação da verdade criadora, e por isso decisiva, que é Deus.

Os impressionantes aplausos ao papa Bento XVI, considerado por alguns um solitário na contramão da história, não podem ser explicados por critérios sociológicos. O ímã do pontificado reside numa reiterada percepção secular: a consciência de que o papa é o único homem no qual milhões de pessoas veem um vínculo direto com Deus. O papa, além disso, galvaniza a nostalgia de Deus que floresce sobre os cacos que sobraram das tentativas de liberação do transcendente.

O crescimento da Igreja, como bem salientou o papa, se dá “muito mais por atração”, nunca por imposição. Entre uma pessoa de fé e um fanático existe uma fronteira nítida: o apreço pela liberdade

Alguns, equivocadamente, imaginam que o influxo cristão sobre os assuntos temporais deveria não existir. Gostariam de ver o papa reduzido à liderança de uma ONG da boa vontade. Querem ver a religião reduzida ao culto, sobretudo privado. Entrincheirada no ambiente rarefeito das sacristias, estaria desprovida de qualquer possível projeção social. A história, no entanto, demonstra que o sucessor de Pedro, depositário da fé e da coerência doutrinal da Igreja, sempre será “sinal de contradição”. E os seus seguidores, embora iguais aos demais, são, ao mesmo tempo, fermento, sal, levedura.

O crescimento da Igreja, como bem salientou o papa, se dá “muito mais por atração”, nunca por imposição. Entre uma pessoa de fé e um fanático existe uma fronteira nítida: o apreço pela liberdade. O sectário assume a sua convicção com exasperada intolerância. O fanático impõe. Empenha-se em aliciar. A pessoa de fé, ao contrário, assenta serenamente em seus valores. Por isso, a sua convicção não a move a impor, mas a estimula a propor, a expor à livre aceitação dos outros as idéias que acredita dignas de ser compartilhadas.

Nos cinco dias da visita do papa, em São Paulo e Aparecida, multidões foram confirmadas na fé, cresceram em segurança, sepultaram respeitos humanos e, sobretudo, abriram um grande espaço de liberdade.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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