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A Terra é plana, dizem agora alguns. A sério. O que antes era uma acusação absurda feita contra os medievais para atingir a Igreja tornou-se finalmente realidade, imitando a fantasia, e há quem acredite nisso. As redes sociais permitiram, finalmente, que meia dúzia de engraçadinhos formassem, pela força do lero-lero, uma pequena legião de otários firmemente convencidos de que a Terra seria plana como uma pizza, não esferoide como um globo. Ainda não vi nenhum que defenda que a Terra plana fique apoiada nas costas de uma tartaruga, infelizmente; seria ainda mais pitoresco.

Neste fenômeno, todavia, temos os sinais de pelo menos dois outros, socialmente importantíssimos: o primeiro, e mais evidente, é um que vem sido discutido já há um tempinho. Afinal, a diferença entre a Terra ser plana e os membros de uma “raça branca” serem superiores aos demais seres humanos é uma questão puramente acidental: a propagação de besteiras e de mentiras pelas redes sociais, como todo mundo já sabe, ocorre sem limites. Basta ser interessante o suficiente para gerar cliques que o algoritmo da rede social imediatamente começa a mostrar aquilo para mais gente, na esperança de gerar ainda mais cliques – e eles são gerados; quanto mais absurda a tese, mais atraente ela é para alguns – e mais e mais gente ficar com a cara grudada na tela… para ver anúncios.

Afinal, nisso as redes sociais não se diferenciam da velha televisão. A programação da tevê – novelas, noticiários, o que for – sempre foi mera minhoca para o anzol que é a propaganda. Nas redes sociais é o mesmo, com a facilidade e a economia de serem os próprios espectadores que geram o conteúdo, cuja exposição é gerenciada por computadores. Daí a fortuna de um Zuckerberg. E daí as Terras planas, daí as superioridades “raciais”, daí toda raça de besteira, aplainada pelo mínimo denominador comum que garanta o interesse de mais gente e amplificada por algoritmos finamente calculados para atrair mais e mais a atenção das pessoas para versões mais e mais veementes da mesma besteira que já as atraía de início. Fico imaginando como deve se divertir o primeiro sujeito que resolveu soltar essa besteira de Terra plana, fazendo a duras penas cara de sério, com meia dúzia de expressões e fórmulas amalucadas para parecer “científico” aos ignorantes. Será que ele está assustado ou feliz com a propagação de sua invencionice, prova cabal de que, como diz a Escritura, “o número dos tolos é infinito”?

Mas há outro fenômeno que eu acho ainda mais interessante, do ponto de vista social. Afinal, ninguém nunca perdeu apostando na imbecilidade humana, como já foi dito. Mas o que está ocorrendo é uma revolta, ou, como preferem os livros de História, uma “Reforma” da ciência, em pleno curso na crença em uma Terra plana. A ciência, ou seja, o conjunto das disciplinas estudadas pelo método científico, com um consenso sempre sujeito a revisão parcial e mesmo paradigmática, está sendo tomada nas próprias mãos pelos propositores da Terra plana. Já houve um ou dois malucos que se martirizaram (leia-se “faleceram fazendo besteira”) na tentativa de provar que a terra é plana. É, para a ciência, exatamente o que foi para a Igreja a revolta protestante: miríades de revoltosos, que fazem questão de ignorar a ortodoxia (no caso, tanto da Igreja – pois a Bíblia já ensina que a Terra é redonda – quanto da ciência) e se reúnem em grupelhos para cultuar sua nova revelação.

Quase 100 anos atrás, vendo o surgimento das sociedades de ibope e dos totalitarismos, Ortega y Gasset perguntou-se, no seu livro sobre a Rebelião das Massas, sobre o que aconteceria no século 20 com a ciência, que necessariamente demanda uma elite para ser tocada. Afinal, os medíocres podem e devem ajudar os gênios, mas quase ninguém faz avanços científicos se não fizer parte de uma pequena elite de gênios (ou de uma ainda mais diminuta elite de sortudos). Se não se reconhece o valor da genialidade (e o mal-estar que este meu parágrafo provoca, sem dúvida, em muitos leitores prova que Ortega y Gasset estava certo ao afirmar que as massas derrubaram a genialidade de seu pedestal), a ciência estagna. Ela não tem como avançar se não se pode sair da mediocridade.

Pois o que aconteceu com a ciência, preservando-a de simplesmente desaparecer lá pela época da Segunda Guerra, foi a sua transformação – causada justamente pela guerra – em religião de Estado. O Estado passou a bancar financeiramente a ciência, e é de pesquisas bancadas pelos Estados mais ricos que veio o grosso da tecnologia nova de que desfrutamos hoje. E os Estados não deixaram de reconhecer a genialidade, ao contrário do que aconteceu na sociedade em geral. Enquanto os meios de comunicação de massa ocupam-se com o último travesti cantarolante, as orquestras sinfônicas continuam tocando Mozart, e seus músicos continuam sendo funcionários públicos. O mesmo, de outras formas, ocorre na ciência.

Mas eis que agora eleva-se a Reforma terraplanista contra a ortodoxia científica. Para quem acredita que vive numa pizza voadora, está tudo ainda por provar. A religião de Estado científica perdeu todo o seu valor, exatamente como a religião católica perdera seu valor para os reformistas do século 16. Estes pegavam a Bíblia e fundavam novas religiões em cada conventículo de reformistas, ao tentar “descobrir” uma religião a partir dela. Aqueles pegam o YouTube e tentam “descobrir” uma ciência em que a Terra seja plana. E agora Ortega y Gasset, onde quer que esteja, há de se perguntar novamente o que há de acontecer com a ciência ortodoxa. O método científico, com seus testes de duplo cego, sua falseabilidade e tudo o mais, desaparecerá, ou se tornará algo limitado a alguns grupos, enquanto uma multidão mais ou menos igual em tamanho dedica-se a desprovar Galileu e Newton?

Parece piada, mas não é. Grande parte do avanço científico do último século veio da verba governamental e do respeito a uma ciência oficial incutido desde a primeira aulinha na creche. Outros fenômenos, outras negações do conhecimento científico mais básico, certamente se seguirão a este, uma vez rompida a exclusividade da ortodoxia científica. Mais e mais gente vai reclamar por não concordar com o que a escola ensina (e nisso a própria escola tem sua parcela de culpa; ao usá-la para doutrinação comunista, os professores abriram as portas para toda e qualquer reclamação, mesmo as mais loucas) e demandando no mínimo tempos iguais para a Terra como pizza e a Terra como globo. Se já acontece isso com o criacionismo em alguns lugares, por que não outro tempo a mais para o terraplanismo? É o equivalente escolar de uma Lei Rouanet, que dá dinheiro à má música como “compensação” aos ofendidos pela manutenção de orquestras sinfônicas. Em uma ou duas gerações, é provável que se perca grande parte do conhecimento científico, exatamente como se perdeu, neste último século, conhecimento artístico. Passamos de Pixinguinha a MC Bin Laden. E na ciência, passaremos a quê? Se a coisa ficar muito ruim, pelo menos, sempre dá para pular da borda da Terra e ir parar em outro planeta, imagino. Um em forma de hambúrguer.

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