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O presidente russo, Vladimir Putin, em celebração pelo oitavo aniversário da anexação da Crimeia, em março.
O presidente russo, Vladimir Putin, em celebração pelo oitavo aniversário da anexação da Crimeia, em março.| Foto: EFE/EPA/Ramil Sitdikov/Sputnik

O presidente americano vem colocando, desde bem antes de conseguir efetivamente provocar a Rússia à guerra, que o mote de sua administração seria uma disputa seria entre a democracia e a autocracia. No caso, os EUA estariam do lado da democracia e Putin, do lado da autocracia. Para os estudiosos de história, há vários aspectos curiosíssimos na afirmação bideniana. O primeiro é que, enquanto os czares russos abraçavam com orgulho o título de “autocratas”, muitos dos fundadores do recentíssimo Estado americano consideravam a democracia um perigo a evitar.

É famosa a resposta de Benjamin Franklin, um dos Pais da Pátria e líderes intelectuais da independência americana, quando questionado sobre qual seria o sistema político concebido pelos fundadores: “uma república, se vocês a conseguirem manter”. Ele não estava afirmando que os EUA poderiam se tornar uma monarquia; o perigo seria que a república aristocrática que haviam fundado viesse a se tornar uma democracia, governada pelas paixões do que percebia como o populacho vil. Tal oposição – que até hoje se apresenta nos nomes dos partidos políticos de lá – era vista como muito mais oposta ao modelo americano que a monarquia. Outro Pai da Pátria americano, Fisher Ames, declarou em carta a John Adams que “[n]ossa doença é a democracia. [...] [N]osso republicanismo morrerá”. O próprio Adams famosamente extrapolou a teoria aristotélica ao dizer que “a simples monarquia logo se fará despotismo, a aristocracia logo dará início a uma oligarquia, e a democracia logo há de degenerar em anarquia”. Um dos mecanismos que buscavam evitar a “queda” dos EUA numa democracia ainda persiste: o Colégio Eleitoral, que impede a eleição direta de um presidente ao fazê-lo eleito por representantes dos estados federados. Aqui mesmo, no Brasil, o fim da era de governos militares foi marcado justamente pela campanha por eleições diretas para presidente da República, coisa que os EUA jamais tiveram.

De onde, então, vem essa valorização da democracia, que no Ocidente atual ganhou foros de ortodoxia dogmática? Como quase tudo em política, as razões são parte coincidência, parte segundas intenções e parte ambição humana. O discurso dos derrotados na Segunda Guerra Mundial, bem como do aliado comunista e dos neutros iberos, era que as “democracias decadentes” haviam acabado; seu tempo se esgotara e suas promessas se haviam revelado vazias. Era um discurso que ressoara por toda parte mundo afora, chegando a se tornar lugar-comum. Ao fim e ao cabo, todavia, ganharam os Aliados. Duas foram as causas da vitória: o sangue das vastas massas de russos empurrados para a morte nos campos de batalha pela autocracia staliniana e a vastíssima superioridade americana em material bélico.

Enquanto os czares russos abraçavam com orgulho o título de “autocratas”, muitos dos fundadores do recentíssimo Estado americano consideravam a democracia um perigo a evitar

O pós-guerra pouco teve a ver com a situação nas décadas anteriores. As grandes potências europeias perderam suas colônias e viram-se fortemente endividadas – afinal, o armamento americano lhes havia sido vendido a prazo, não doado. A própria Europa, vergonhosamente dividida pelos vitoriosos em Yalta, teve sua metade oriental entregue ao comunismo soviético; nações antiquíssimas viram-se reduzidas a “satélites” de Moscou. Uma “cortina de ferro” – em geral, na verdade, um campo minado com cercas eletrificadas e guardas armados – separou o mundo-prisão comunista da Europa Ocidental submetida aos americanos. Até mesmo os habitantes da metade oriental da Alemanha – bem menor que no entreguerras, devido à “limpeza étnica” em que os russos substituíram os prussianos, pomeranos e outros alemães orientais por poloneses – viram-se impossibilitados de manter contato com seus familiares e compatriotas do outro lado.

O mundo todo, na verdade, viu-se forçado a tomar partido na nova disputa entre os EUA e seus “satélites” e a União Soviética e os seus. A Cortina de Ferro que dividia a Europa era ao mesmo tempo construída nos movimentos de libertação de antigas colônias, com os dois novos polos de poder apoiando diferentes candidatos a ditador África e Ásia afora. Curiosamente, data de então, daquela confusão do pós-guerra, a elevação da palavra “democracia” a amuleto verbal. De um lado os EUA se diziam “líderes do mundo livre” e afirmavam-se (e a seus reféns europeus) democráticos. Do outro, os países comunistas iam mais longe e faziam da palavra “democracia” parte de seus nomes. A parte da Alemanha ocupada pelos EUA era a República Federal da Alemanha; a parte ocupada pela União Soviética dizia-se República Democrática Alemã. Cada um, evidentemente, explicava de uma maneira o sentido do patuá verbal: para os americanos tratar-se-ia – muito em tese – do sistema político de democracia representativa imposto por eles à Europa Ocidental (mas não aos países africanos, asiáticos e latino-americanos alinhados com eles). Para os russos e as nações que aprisionavam, “democracia” significava que – em tese... – todo o poder era das assembleias de trabalhadores (ditas “sovietes”) organizadas no Partido único. Todo mundo, cada um a seu modo, batia no peito e se afirmava “democrata”.

O presidente americano Eisenhower, general vitorioso na Segunda Guerra e herdeiro da Guerra Fria iniciada por seu antecessor Truman, contudo, alertou ao deixar o poder que o maior perigo para os EUA era o que chamou de “complexo industrial-militar”. Declarou ele que o poder acumulado durante a guerra e depois dela pelas indústrias de armas, unidas simbioticamente às Forças Armadas americanas, tinha “potencial para um aumento desastroso de poder em mãos erradas”. E foi o que ocorreu. John Adams e Benjamin Franklin provavelmente diriam ter avisado, anos e anos atrás. O que houve, contudo, não foi uma degeneração de democracia em despotismo, mas de república aristocrática em oligárquica.

Afinal, certamente os Pais da Pátria americanos aprovariam seus aristocráticos sucessores: até hoje os EUA não tiveram um presidente que não fosse descendente da realeza britânica (Obama o é por parte da mãe; o pai é da nobreza queniana), e praticamente todos eles são em alguma medida aparentados uns aos outros. A rainha da Inglaterra é, hoje em dia, uma das pessoas mais próximas genealogicamente de George Washington, o primeiro presidente americano.

Mesmo nas classes populares jamais houve igualdade real entre todos os nativos, devido ao horrendo racismo que sempre permeou a sociedade americana. Uma das lutas mais acirradas do velho general Eisenhower durante sua presidência foi no sentido de fazer com que “não mais h[ouvesse] cidadãos de segunda classe neste país”. Ele chegou a mandar uma divisão de paraquedistas para garantir a integração racial nas escolas do Sul, e conseguiu, ainda que a duras penas, acabar com o separatismo racista nas Forças Armadas de seu país.

A aristocracia tradicional, contudo, acabou sendo submetida aos interesses do complexo denunciado por Eisenhower. Após o breve interregno trumpista, nem mesmo a fantasia de um presidente com real poder de mando perdurou. Trump, que tentou diminuir um pouco que fosse o poder do complexo industrial-militar, tornou-se um pária político, até mesmo em seu partido, apesar do grande apoio popular, e foi substituído em uma eleição no mínimo esquisita por Biden – a triste “casca” senil de uma velha raposa política, com o rabo devidamente preso e os armários devidamente cheios de esqueletos bem conhecidos das agências de inteligência do tal complexo.

Com a ascensão do “complexo industrial-militar”, o que houve nos EUA não foi uma degeneração de democracia em despotismo, mas de república aristocrática em oligárquica

Mesmo assim, persiste a fantasia de os EUA serem os paladinos de uma “democracia”. Em grande medida, trata-se de um discurso voltado ao público interno, cuja incapacidade total de entender que há quem pense de outra maneira é notória. É bastante provável, por exemplo, que enorme parcela dos envolvidos na guerra de agressão americana contra o Iraque – que fez daquele país artificial uma vasta zona de caos, onde surgiu o Estado Islâmico – realmente acreditasse que, ao retirar Saddam do trono onde os EUA o puseram e fazer eleições livres, surgiria uma democracia real.

O problema é que – como, aliás, sabiam perfeitamente os Pais da Pátria americanos – o sistema americano (chame-se-o republicano, democrático ou ambos) não foi jamais concebido para aplicação universal. Ao contrário: trata-se de um sistema político concebido para um povo marcado por características únicas, os frutos mais verdadeiros do que Weber descreveu: um povo materialista, unido numa “ética protestante” de individualismo extremado, que eleva a ganância e a cobiça a princípios civilizatórios e faz da religião assunto de foro interno. Em outras palavras, um sistema perfeitamente moderno, que só funciona – e mesmo assim, como seus fundadores alertaram e a história provou, por tempo limitado – para um povo moderno.

Ao longo de toda a história universal, a ordem dentro de cada sociedade decorreu da percepção por seus membros de uma ordem maior, de origem divina. Sejam os infinitos deuses do hinduísmo ou o deus radicalmente solitário do islamismo, é da ordem divina que decorre a ordem terrestre. A reviravolta completa em que se coloca o mundo material acima da ordem divina e o desejo pessoal de riqueza acima da aceitação geral de uma ordem universal é o fruto de um fenômeno histórico restrito aos Países Baixos e ao mundo anglo-saxão. De uma imanentização do dualismo teológico da dupla predestinação calvinista, em que a riqueza material deixa de ser sinal de eleição divina para se tornar o objetivo final da vida, enquanto a pobreza material é tida por merecida condenação a um “inferno” de pobreza material puramente terrestre. Enquanto duraram, a África do Sul e a Rodésia dominadas por descendentes destes mesmos povos também apresentaram uma forma própria do mesmo fenômeno, modificada contudo pela vastidão das populações pretas submissas.

Não há nada de universal nem de universalizável em algo que acaba sendo percebido em outras paragens primeiro como atraente pela riqueza material e, num segundo momento, repulsivo pela indigência espiritual e pela necessária dissolução individualista das estruturas familiares e sociais. Até mesmo a aparência de aceitação de tais reviravoltas por membros de outras culturas – basicamente todo o resto do mundo – sói ocorrer numa chave de interpretação que um americano teria dificuldade em entender. O que é obrigação moral em qualquer outro lugar do mundo, como cuidar dos pais na velhice e ajudar os parentes necessitados, é percebido pelo americano como corrupção moral. E, claro, o que é universalmente apontado como sinal de dissolução moral – do abandono dos pais à mania de afirmar e celebrar formas cada vez mais complicadas de sexo infértil, além, claro, da cobiça aberta e declarada – é tido por anseio universal pelo grosso da população americana.

Cada cultura, ao longo dos séculos e milênios, acaba achando maneiras próprias de governo. O que todas têm em comum, ironicamente, é serem de uma certa forma democráticas. Afinal, sem uma boa medida de consenso dos governados não há como o pior tirano manter-se no poder. As tropas que o sustentam também fazem parte da sociedade, e quando a impopularidade de um governante cresce demais elas acabam descobrindo ser mais fácil tomar o trono que defender sua ocupação por um tirano impopular. Pode não ser a visão americana ou europeia ocidental de democracia, pela ausência de representantes eleitos. Por outro lado, a própria existência deles demonstra que não é todo mundo que quer ter de tomar decisões de Estado, no mais das vezes difíceis e frequentemente dolorosas. Afinal, governar é a arte do possível.

Por outro lado, pode-se dizer que em toda parte há sempre uma grande maioria silenciosa que deseja apenas trabalhar, criar os filhos e vê-los casados, na tranquilidade e previsibilidade de uma sociedade em que a moral é universalmente aceita. Nalgumas partes do mundo, como a própria Rússia, dificilmente isto ocorreria sem um autocrata no governo. Veja-se, como prova, a enorme popularidade de Putin entre seus compatriotas. Em outras, ao contrário, quanto menos o governo fizer, melhor funcionam as coisas; é o caso luso-brasileiro. Diz-se que “o Brasil cresce à noite”, quando o governo dorme, mas ao mesmo tempo temos um anseio permanente por uma figura paterna – de dom Pedro II ao “Bolsomito” (para seus seguidores), passando pelo “Lulinha Paz e Amor” (idem) e por Getúlio. Se surgisse um sucedâneo de Grande Pai que não carreasse consigo uma cisão ideológica como a dos prováveis candidatos, o difícil seria tirá-lo de Brasília. Desde que, claro, ele dormisse a sono solto a noite toda, para o país crescer. São receitas diferentes, modos diferentes de dar ao povo o que ele quer – o que não deixa de ser “democracia”. O que não funciona é tentar impor a um povo um sistema surgido noutra cultura, que dependa de elementos culturais ausentes.

Em toda parte há sempre uma grande maioria silenciosa que deseja apenas trabalhar, criar os filhos e vê-los casados, na tranquilidade e previsibilidade de uma sociedade em que a moral é universalmente aceita

Veja-se que até mesmo o comunismo russo, que apregoava “todo o poder aos sovietes”, na prática teve sucessivos “czares vermelhos”. Eram autocratas clássicos, monarcas absolutos, ainda que dedicados ao ateísmo e ao desenvolvimento industrial. Os alvos comunistas, no fim das contas, são os mesmos do capitalismo. Ambos reduzem o homem ao Homo oeconomicus, negando ou trancafiando nas consciências qualquer desejo mais alto. O comunismo, no entanto, ao contrário do capitalismo, simplesmente não funciona. Ambos sufocam as almas, mas o comunismo provou-se incapaz de encher as barrigas e entregar os tantos bens materiais prometidos. Quando a coisa ficou feia demais, o sistema comunista caiu como fruta podre, e após um período de caos surgiu outro autocrata “para botar ordem na casa”. Um sistema tão medonho quanto o soviético não duraria em outro lugar o tanto que aquele durou; o que o sustentou foi a cultura russa de autocracia, que o culto comunista à personalidade do autocrata soube usar tão bem para seus fins nefastos.

A Europa Oriental, tendo sido subjugada pelo duro tacão comunista por décadas, está hoje servindo de laboratório cultural. A Hungria acaba de reeleger Viktor Orbán, que se afirma “democrata iliberal” e resiste às imposições culturais americanas apesar de fazer parte tanto da Otan quanto da União Europeia. A pobre e sofrida Ucrânia tornou-se literalmente campo de batalha. Os países bálticos têm realizado experiências interessantíssimas, facilitadas pela pequena extensão territorial e população diminuta e relativamente homogênea. A Polônia tenta fazer como a Hungria, é tão acusada quanto esta pelas elites atlânticas, mas acaba precisando aproximar-se mais dos EUA devido à proximidade do perigo russo.

Os alvos comunistas, no fim das contas, são os mesmos do capitalismo. Ambos reduzem o homem ao Homo oeconomicus, negando ou trancafiando nas consciências qualquer desejo mais alto. O comunismo, no entanto, ao contrário do capitalismo, simplesmente não funciona

O fato é que, ao mesmo tempo, nenhum país é totalmente democrático, mas tampouco nenhum é totalmente desprovido de democracia, em sentido lato. Colocar o conflito atual – que diz respeito a esferas de influência, lucros financeiros e perigos militares reais – como opondo democracia e autocracia é propaganda da mais mentirosa. Afinal, o conflito real é entre a Rússia – uma autocracia orgulhosa de sê-lo, num país historicamente autocrático – e os EUA, uma oligarquia que jamais foi democrática, a não ser num sentido tão vago do termo que teria de ser aplicado igualmente à Rússia. O “tabuleiro” é a terra governada por outra oligarquia, a ucraniana. O prêmio em disputa é uma burocracia, uma oligarquia em que a ocupação de espaços burocráticos conta mais que o dinheiro: a Alemanha, centro da União Europeia, e por extensão os demais países submetidos a Bruxelas.

Os objetivos estratégicos de ambos os atores principais do conflito parecem estar sendo atingidos, ainda que com consequências indesejadas para ambos. Os EUA parecem ter conseguido afastar a Alemanha da Rússia, pagando o altíssimo preço de perder o controle dos mercados mundiais ao acelerar a desdolarização. E mesmo assim ainda não se sabe até que ponto terão êxito em afastar Rússia e Alemanha, na medida em que sem gás russo a indústria alemã acaba, mas ao menos o discurso alemão atual é de submissão aos EUA. A Rússia, do mesmo modo, está seguindo sem grandes revezes o plano anunciado quando invadiu a Ucrânia; as áreas de maior concentração de milícias neonazistas foram dominadas, e as forças armadas ucranianas na prática não existem mais. Há ainda dois bolsões de soldados ucranianos regulares no leste do país e um de milicianos neonazistas no sudoeste, mas, como eles não têm mais nem munição, nem combustível, nem veículos, nem capacidade de coordenação e deslocamento organizado, o resultado já é garantido. As áreas em que estão sendo sistematicamente chacinados os milicianos provavelmente não será devolvida ao controle da Ucrânia, até por serem de maioria populacional russa, evitando assim investigações futuras sobre o paradeiro deles.

Já a democracia, pobrezinha, ela nada tem a ver com essa tristeza toda.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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