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LEON NEAL/AFP
LEON NEAL/AFP| Foto:

Quando há vontade política de encetar uma ação, frequentemente os poderosos criam ou simplesmente inventam razões para fazê-lo. Inúmeras são as guerras pretensamente justificadas por invencionices ou acontecimentos simplesmente sem relação alguma com a ação militar que se pretende justificar. Hitler, para invadir a Polônia – coisa que já havia sido combinada com Stálin, que invadiu o mesmo país pelo outro lado – criou um falso incidente de fronteira, em que soldados poloneses teriam atacado uma guarnição alemã. Os soldados eram alemães, fantasiados de poloneses; daí o nome “falsa bandeira” para este tipo de ação. Os EUA simularam o famoso incidente do Golfo de Tonkin para justificar sua entrada na guerra contra o Viet-Cong, que acabaram perdendo. Bush justificou com o ataque jihadista de Onze de Setembro sua invasão do Iraque, derrubando um governo que era o maior inimigo dos jihadistas no Oriente Médio. Exemplos não faltam, e o ponto em comum é que o objetivo da ação simulada é apenas despertar entusiasmo guerreiro; raros são os casos em que ela faria algum sentido, mesmo se fosse verdade. A guerra é a continuação da política por outros meios, e o objetivo dos ataques de falsa bandeira e outras farsas históricas é simplesmente insuflar na população apoio para ações que normalmente seriam consideradas despropositadas. Primeiro vem a vontade política de fazer algo, depois inventa-se uma desculpa.

Pois é exatamente isto que está claramente acontecendo no ambiente virtual, a nova ágora onde ocorrem a comunicação e a união políticas no Século XXI. Está se operando, às claras, uma tomada de poder definitiva das grandes corporações sobre a internet e, pela internet, do controle de todo o comércio e comunicações mundiais. O factoide mais indicativo é que o dono do Facebook, Mark Zuckerberg, veio a público identificar “problemas” absolutamente inexistentes, surgidos após uma longa preparação de engenharia social. Examinemo-los.

O primeiro deles seria o bicho-papão preferido de nove entre dez estrelas: nazistas. Nazistas, todo mundo sabe, são o mal encarnado. É socialmente permitido, ou até incentivado, bater em nazistas. Nazistas são uma espécie de versão política de estupradores de criancinhas ou coisa semelhante. Ninguém apoia nazistas; até mesmo os loucos que se dizem nazistas assumidos no mais das vezes estão apenas querendo chocar. Pois subitamente apareceram nazistas de debaixo das pedras, nazistas por toda parte. Até mesmo, pasmem os senhores, alguns em carne e osso, balançando suas horrendas bandeiras vermelhas pelas ruas de alguma pacata cidadezinha americana como num mau filme de ação. Meia-dúzia de palhaços com um corte de cabelo engraçado, tão evidentemente idiotas úteis a serviço de gente muito mais esperta que chega a ser engraçado. O nível de perigo à civilização oferecido por eles é menor que zero, ainda que se tenha conseguido até mesmo um mártir – uma moça atropelada por um boçal com vagas ligações nazistas. Afinal, não nos esqueçamos, para que nazistas consigam fazer algum mal à sociedade eles precisam tomar o poder primeiro. Esta parte costuma ser bastante complicada, como Da. Hillary Clinton percebeu recentemente.

Mas o frenesi de “oh, socorro, lá vêm nazistas malvados”, que dominou a imprensa e a virtualidade por um tempo, serviu de preparação de terreno para que parecesse ser notícia importante a “descoberta” pelo Facebook de que seria possível a um anunciante (os verdadeiros membros do Facebook) selecionar como critério de público-alvo o antissemitismo. Note-se que hoje em dia antissemitismo é algo que praticamente só existe em meio islâmico, mas aparentemente o Facebook teria encontrado “nazistas”. Quantos? Dez ou doze, se tanto; gente idiota o suficiente para listar entre seus interesses pessoais o antissemitismo. Não se sabe sequer se alguém chegou a comprar anúncios voltados apenas para antissemitas ou para qualquer outro grupo de pessoas com QI máximo de dois dígitos. Mas descobriu-se que seria possível. Logo, vejam só, nazistas. Ei-los, eis o mal encarnado assustando as crianças. É uma não-notícia, um factoide sem sentido algum; exatamente do mesmo modo como se poderia ter acusado a possibilidade de comprar anúncios que visassem apenas antissemitas, seria possível comprar outros que visassem apenas pessoas que acreditam que o homem não foi à lua. Basicamente, o que se estava “acusando”, a “descoberta” macabra que se teria feito era simplesmente de que seria possível direcionar anúncios para uma categoria autodefinida, o que é a definição do modelo de negócios virtual. É disso que vivem Google e Facebook: direcionamento de anúncios para públicos específicos.

Mas, usando o fantasma de um nazismo inexistente, subitamente pintou-se de perigo o ato normalíssimo de deixar que as pessoas se definam por conta própria, sem se encaixar em alguma categoria vinda de uma lista centralizada. Usar a categoria de “antissemitismo”, mais ainda logo depois do frenesi absurdo de descoberta de nazistas na Pensilvânia, é mera jogada de marketing, tão transparente quanto qualquer ataque de falsa bandeira da história. Qualquer categoria suficientemente minoritária estaria exatamente na mesma situação, sem que isso provocasse a grita que o antissemitismo provocou. Mas o que queriam era provocar grita, não anunciar descoberta real alguma, ou mesmo problema real algum.

A segunda “denúncia” contra si mesmo feita pelo dono do Facebook é de que teriam sido publicados milhares de anúncios ou postagens – ninguém parece saber direito – pagos por russos, durante a campanha eleitoral americana. Ora, os russos também vinham sendo cuidadosamente preparados para que servissem de objeto para alguma ação do gênero há já meses. Inventou-se uma suposta participação russa no vazamento de e-mails comprometedores de Da. Hillary Clinton durante o processo de escolha de candidato do Partido Democrata, como se o problema fosse quem fez vazar os e-mails e não seu conteúdo.

Em seguida, continuaram a caça às bruxas e as “acusações” de ter contato com russos feitas contra integrantes da campanha e do governo Trump. Ora, estranho seria se não tivesse havido contato; afinal, a base da plataforma de política externa de Trump era evitar a guerra contra a Rússia que Obama parecia estar preparando. Os tais anúncios russos ninguém viu; só se sabe que existiram. Continua sem razão alguma o gigantesco salto que vai de anúncios terem sido publicados até a eleição ser influenciada, que dirá influenciada de forma ilegal.

Ambas as não-notícias juntas, contudo, formam a base para outro “incidente” muito mais sério. A suposta presença de nazistas escondidos aqui e ali justifica a caça às bruxas e a aplicação de medidas drásticas, como se se descobrisse que a cozinha está cheia de baratonas cascudas. Nazistas e russos, quiçá nazistas russos: dá para ser mais grave que isso? Pena que na realidade não há nem um nem outro. É tudo um nada batido em neve até virar uma espuma que tampa a realidade.

O fato de terem sido publicados anúncios “do mal” (pois no fim das contas não vai além de tal leviandade a denúncia) também justifica correr em círculos arrancando os cabelos. Afinal, o que assim se tem é uma suposta presença do mal absoluto nas duas pontas do processo facebookiano: entre os membros reais (anunciantes “ligados aos russos”) e entre as mercadorias (as pessoas que têm perfis no Facebook, dentre as quais haveria nazistas).

A ágora virtual estaria contaminada, com agentes secretos do mal absoluto, nazistas russos ou coisa equivalente, andando no meio das prateleiras e das alas. Algo precisa ser feito; as autoridades precisam proteger-nos de nós mesmos, urgentemente! E é assim que se consegue apoio para qualquer tomada de poder; alguém andou estudando uns livros de história por lá.

O que se procura justificar é uma ação de tomada de controle absoluta, atingindo a totalidade das comunicações virtuais. Nisso o Facebook é apenas o porta-bandeiras; inúmeros provedores de espaço expulsaram subitamente páginas de seus servidores, num esforço coordenado de expurgo. A “solução’ proposta para o não-problema denunciado nas não-notícias é simples: censura aberta e descarada. O Facebook já era useiro em vezeiro em punir arbitrária e ferozmente a violação de alguns tabus peculiares à cultura e ideologia de seu fundador. Agora, contudo, já se pode ver em que direção a coisa está avançando. Não se trata mais de meramente punir os que não se conformem, mas de exigir conformidade absoluta, pela censura direta mais drástica. A censura, avisou Zuckerberg, passará a ser feita manualmente, com Comissários do Povo examinando as postagens em busca de violações do politicamente correto e de perigosas declarações contra as loucuras da etapa presente de desconstrução da sociedade. Afinal, vale tudo para nos proteger dos nazistas russos, ou russos nazistas, ou seja lá o que é que se invente para meter medo nas criancinhas. Isso é a negação da mera possibilidade de cidadania virtual.

Quando a Internet começou, sua extrema descentralização fazia dela o ambiente perfeito para a troca de ideias e para o conhecimento do diverso, do outro. Esperava-se, nos primórdios de sua popularização, que cada um tivesse a sua “home page”, uma página que refletisse suas idiossincrasias e que pudesse ser visitada por quem quer que quisesse interagir com seu criador. A coisa não continuou assim. Aos poucos, o ambiente virtual passou a ser progressivamente intermediado e portanto centralizado, com dois ou três gigantes dominando todas as formas de interação. Ninguém, ou quase ninguém, tem a tal “home page”; todos, ou quase todos, têm um perfil no Facebook, tornando-se mercadorias do que é na verdade um sistema de venda de públicos determinados para anúncios.

A diferença é da água para o vinho, ou, antes, da água para o fogo; a “home page” seria pessoal e sem limite algum que não os impostos pelo gosto do próprio dono. Ali ficariam à mostra suas ideias, seus gostos, preferências, amizades e o que mais a pessoa quisesse tornar público, por iniciativa individual e sob estrito controle de cada um. Já o perfil do Facebook é o oposto; é uma etiqueta de produto na prateleira, controlada, vigiada e, principalmente, censurada e adestrada pelo real proprietário daquilo tudo, o Facebook, para que não assuste nem incomode os verdadeiros fregueses, que são os comerciantes que desejam escolher públicos para seus anúncios.

As interações são controladas, sendo permitidas apenas na medida em que não atrapalhem os objetivos reais do sistema. Postar linques para fora do ecossistema facebookiano, por exemplo, é desincentivado. A mesma postagem feita duas vezes, uma com linque outra sem, apresenta uma diferença brutal de alcance. O usuário real do Facebook, não podemos nos esquecer, não somos nós: é o anunciante. O mesmo ocorre com o Google, responsável pela outra metade das interações na internet, através do virtual monopólio dos serviços de e-mail pelo Gmail e, claro, do mecanismo de busca. O dono do Google, em uma entrevista, disse que o objetivo dele é fazer com que haja apenas uma resposta a cada pergunta que é feita ao servidor: a resposta “certa”, ao invés de inúmeras respostas para que escolhamos. Só isso já dá calafrios na espinha de quem quer que preze pela liberdade de opinião e de pesquisa. Nos EUA, há ainda o monopólio da Amazon nas compras pela internet, que lá são onipresentes e em vias de se tornarem mais comuns que as presenciais.

Estes três gigantes – Facebook, Google e Amazon – veem-se hoje na posição de junta governante da internet. Se somos punidos por algum deles e nos são negados seus serviços, estamos, na prática, retirados da ágora virtual. É como se fôssemos presos, como se nossa loja fosse fechada à força, como se nosso telefone fosse cortado e o correio deixasse de nos entregar correspondência. No virtual não existe cidadania; estamos em uma ditadura virtual, e os incidentes apontados por Zuckerberg estão servindo de justificativa para “fechar” ainda mais o clima. Nossas comunicações estão sendo lidas e censuradas; nossas manifestações públicas podem valer, e valem, punições cujo alcance causaria inveja a qualquer juiz do mundo real. A interação humana, que é a base da sociedade, está sequestrada e dominada por corporações gigantescas que não têm interesse algum na existência de uma sociedade livre.

Num momento em que enorme parcela do trabalho é feito “pela internet”, suspender os serviços de mensagem do Facebook ou do Google é efetivamente uma forma moderna de ostracismo ou exílio. É uma punição que atinge até mesmo a capacidade de cada um de ganhar o pão de cada dia e de prover para sua família.

Nem mesmo a ditadura militar brasileira chegou a tal ponto de censura e controle. A cidadania dos brasileiros era incompleta, mas existia. Agora, neste momento em que a cidadania se exerce quase majoritariamente no meio virtual, é nele que inexiste qualquer garantia. Precisamos conquistar direitos de cidadania virtual para todos e lutar contra a censura e a ditadura virtual. E para isso teremos que conseguir encontrar meios de enfrentar os gigantes virtuais.

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