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Foto: Rodolfo Buhrer/Arquivo Gazeta do Povo
Foto: Rodolfo Buhrer/Arquivo Gazeta do Povo| Foto:

Nada mais perigoso que pessoas sem conhecimento direto de um assunto tentando regulá-lo. Os lobistas de apartamento, nascidos e criados na cidade, no máximo tendo visto um pedaço de mata pela janela do carro, são normalmente os maiores defensores daquele ambientalismo mais radical que vê o homem como uma praga. Do mesmo modo, gente que mal teve alguma relação com um ou dois cachorros como mascotes tende a ignorar completamente os benefícios da criteriosa seleção genética dos cachorros, este labor de séculos que nos trouxe e mantém as diferentes raças caninas. Estas, ao contrário das supostas raças humanas, existem. Um dogue alemão é completamente diferente em força e temperamento de um chihuahua, e ambos diferem de um cão pastor. Já um filhote de vira-latas é uma incógnita. Pegá-lo para criar é como tomar um ônibus sem saber para onde aquela linha vai.

Mas o que não falta é gente bem-intencionada, mas daninha à sociedade, criando confusão e menosprezando o trabalho humano tão precioso dos canis. Acaba de ser aprovada na Califórnia, o estado mais progressista dos EUA, uma lei que simplesmente proíbe a venda em loja de filhotes gerados em canis, obrigando ainda as lojas a vender animais oriundos de abrigos. A ideia é sabotar o modelo de negócio dos canis de criação de filhotes de raça. É uma lei socialmente daninha e injusta em vários níveis, que tentarei mostrar aqui.

Como tudo o que aparece de novidade ruim na gringa é rapidamente importado pelos mais bobos, aqui mesmo no Brasil já vi campanhas pregando que não se deva comprar cachorros (presume-se que de raça; ninguém dá dinheiro por filhotes de vira-latas), e sim “adotar” (pela mesma razão, vira-latas; ninguém doa filhotes de cães de raça). Ora, propor isso é ignorar os inúmeros benefícios das raças definidas, que, ao contrário dos vira-latas, geram animais de comportamento e capacidades físicas previsíveis. Nem falo agora do mau uso do verbo “adotar”, que já induz à confusão do cachorro com uma criança.

Já tive vários vira-latas; no momento tenho dois. Sempre tive também cachorros de raça; no momento tenho apenas uma pastor canadense, mas já tive vários poodles, pastores alemães, boxers e dogues alemães. Crio todos os animais exatamente da mesma maneira; eles comem e bebem do mesmo pote, ficam sempre soltos, juntos, e ganham o mesmo adestramento, carinho e atenção. Os filhotes comportam-se de forma muito semelhante em todas as raças, mas quando crescem a diferença entre as raças, entre os cães de raça e os vira-latas e, mais ainda, entre os vira-latas, mesmo que sejam da mesma ninhada, é gritante demais para que não seja notada até pelas pessoas mais distraídas. Mas, justamente, quem propõe uma besteira dessas é gente que nunca lidou com cachorros, ou se o fez foi com um cachorrinho de apartamento. Não é de se estranhar que a campanha tenha surgido justamente em tal lugar (a “lacradora” Califórnia) e em tal meio – hipsters com dificuldade de assumir as responsabilidades da vida adulta, entre elas o trabalho, e mais preocupados em seguir modas bizarras de alimentação e pilosidade corporal.

Já os cães nunca seriam hipsters vagabundos; eles trabalham, sempre e o tempo todo. A “amizade” em que se tenta antropomorfizar o apego irracional do cachorro ao dono é apenas mais uma forma de trabalho canino à qual se juntam outras, sendo a adequação do animal a elas perfeitamente previsível nos cães de raça e imprevisível nos vira-latas. Por exemplo, os cães pastores tomam conta de outros animais (inclusive o homem), especialmente dos filhotes. Um cão pastor vai sempre tentar impedir crianças de entrar numa piscina, por exemplo, a não ser que seja treinado para não o fazer. Já um dogue alemão dificilmente reparará na existência das crianças, que dirá cuidar delas, e muito menos ainda se preocupará com piscinas. Um labrador quererá entrar na piscina com elas para brincar. Um yorkshire ou um beagle, raças caçadoras, ignorarão tudo o mais se farejarem um camundongo. Eles são previsíveis, e esta é uma qualidade enorme quando se está buscando um cão, qualquer que seja o papel que se espera que ele desempenhe.

“Não se compra um amigo”, outro slogan dos inimigos das raças caninas, é algo de uma imbecilidade ímpar. Afinal, todo mundo escolhe os amigos, e depois de adulto dificilmente se há de se tornar amigo de alguém com um temperamento desagradável. Não adianta fingir que o apego dos cães a quem os criou seja “amizade”; não é. É um apego irracional de um animal que é na verdade uma variante retardada mentalmente do lobo, não saindo nunca do estágio de dependência pré-adolescente. Cachorro é um lobo bobo que precisa de um dono, que ele percebe como líder de matilha, não de um “amigo”. Quando cachorros andam juntos é uma matilha, não amizade. Não adianta nada tentar usar terminologia psicológica humana para tratar de bichos radicalmente diferentes de nós; isso só atrapalha. Cachorros devem ser percebidos como cachorros, não como seres humanos que não são. Só tratando-os como cachorros eles serão felizes e se desenvolverão plenamente.

Minha mãe dizia que crianças sempre deveriam ter um cachorro, justamente para que tenham de lidar com um ser que se comporta de maneira totalmente diversa da delas. Já os proponentes do fim dos canis confundem o apego do bicho pelo dono e o carinho do dono pelo bicho com amizade, ou mesmo, cruelmente na sua ignorância e confusão, tratam os pobres animaizinhos como se fossem bebês humanos, comportamento que inevitavelmente leva os cães à neurose e à loucura.

Cachorros são animais irracionais, predadores dominados pelos instintos, e é preciso entendê-los em seu próprio campo, sem tentar fingir que são humanos. O que esses bichos muito legais mais querem é ter um dono. Vira-latas de rua ficam permanentemente rondando em busca de um dono. Qualquer dono serviria para eles, mas não é qualquer cachorro que serve ao que se queira dele.

Levar para casa um vira-latas significa pôr em casa um bicho absolutamente imprevisível, que, ao contrário do que ocorre com cães de raça, tem grandes chances de não ter o temperamento adequado ao que se espera dele. Pode ser uma boa ação pegar um filhotinho de vira-latas para criar (e castrá-lo aos cinco meses!), mas é sempre um risco que se corre. Afinal, não se tem como ter ideia de como o bicho será. Enquanto se sabe que um labrador, por exemplo, jamais será agressivo, ou que um pinscher sempre o será, ao chegar à maturidade um vira-latas pode se colocar em qualquer ponto do espectro de agressividade, territorialidade, apego, obediência, inteligência e quaisquer outras características. Não é errado apostar, mas é burrice apostar além do que se pode pagar. Quem tem condições financeiras e espaço livre para sustentar durante cerca de 15 anos um vira-latas inadequado e problemático pode apostar nele, mas quem não tem deveria gastar um dinheirinho e comprar um cão de raça, que jamais decepcionará o dono. Pegar um filhote de vira-latas no lugar de um filhote de raça é uma falsa economia, e é uma história que provavelmente acabará mal.

Aqui mesmo, por exemplo, estou com problemas com um vira-latas, que ao chegar à idade adulta revelou simplesmente não entender seu dever de tomar conta da casa, preferindo partir em aventuras. Sai e fica dias na rua, mas sempre volta, imundo e cheio de carinho, procurando atenção amorosa. Ora, um cachorro de uma raça apropriada para guarda jamais faria isso. Já com vira-latas é impossível saber de antemão: na mesma ninhada provavelmente havia outros cachorros com instinto territorial mais desenvolvido, mas quando o peguei eu não teria como saber qual seria o temperamento do bicho.

Já tive ao mesmo tempo dogue alemão e poodle. Chegam a ser engraçadas as diferenças entre eles, especialmente de tamanho, agilidade e inteligência. Enquanto o poodle entende uma ordem e a cumpre, o dogue alemão ainda está piscando, tentando entender o que é mesmo que se quer que ele faça. Ora, isso é absolutamente previsível e vai se repetir em qualquer dogue e qualquer poodle. Entre um poodle e um dogue, há uma diferença como a que separa um astrofísico de um fisiculturista. É para isso que as raças foram desenvolvidas: para que elas sejam adequadas a algum trabalho, alguma função doméstica e social. Entre os trabalhos caninos, está o de companhia para seres humanos. Repito: o cachorro não é “amigo” de ninguém; isso é uma antropomorfização, uma tentativa de atribuir ao cachorro algo que é especificamente humano.

O cachorro é um animal irracional, que tem por característica apegar-se a quem lhe faz companhia desde filhote ou, em grau muito menor, a quem quer que o trate bem depois de adulto. Por isso, qualquer cachorro pode, em alguma medida, servir de sucedâneo de companhia humana para pessoas solitárias: ele também não quer ficar sozinho. Já as raças definem as demais características que o bichinho terá quando adulto. Há raças criadas para ficar dentro de casa e outras criadas para os grandes espaços dos sítios e fazendas, acompanhando com alegria o dono em longos deslocamentos a cavalo ou mesmo de moto. Entre os vira-latas, todavia, na mesma ninhada pode haver cães que só ficam bem dentro de casa e outros que nasceram para correr a céu aberto. Já um animal de uma raça criada para ser cão de companhia doméstica, como um lulu da Pomerânia, será sempre excelente nisso, ainda que não o seja para outros fins. Uma pessoa incapacitada pode criar um deles praticamente no colo, o que faz deles excelentes companheiros de idosos. Já um vira-latas pode passar a detestar colo quando ficar adulto, pode crescer demais, pode revelar ter um temperamento inadequado para viver em apartamento, pode se tornar demasiadamente agressivo, pode ser excitável demais etc., e tudo isso só aparecerá quando não só ele já estiver apegado ao dono, mas o dono já estiver apegado a ele. Evidentemente, se o dono for um bobo que confunde cachorro com criança e neurotiza o pobre animal, a coisa será ainda pior. Já vi gente chorar de desespero por causa de cachorro neurótico, quando a neurose do cachorro foi criada justamente por ser tratado “como criança” humana.

Apostar costuma ser uma maneira segura de ter prejuízo, e o mesmo ocorre quando se aposta que um vira-latas será adequado ao trabalho que se quer que ele desempenhe quando adulto (cão de companhia, guarda etc.). É por isso que infelizmente muita gente se vê com um problema nas mãos por volta de um ano depois de pegar um filhote de vira-latas para criar. Daí a enorme quantidade de cachorros cruelmente soltos nas ruas, ou abandonados em abrigos. Seria menos cruel sacrificar o cachorro que abandoná-lo: afinal, o apego extremo e incondicional a quem o criou é a única constante em todos eles. Mas muita gente, movida por sentimentos irracionais, prefere cruelmente abandonar o bichinho na calada da noite em outro bairro, o que explica em grande medida a proliferação de vira-latas soltos em busca de dono.

Se tivessem comprado um filhote de uma raça adequada àquilo que procuravam em um cachorro, isso não teria acontecido. A proliferação de cães abandonados é justamente uma decorrência das campanhas pela adoção de filhotes de vira-latas, num ciclo vicioso que só faz mal à sociedade. Não adianta nada conseguir donos para uma ninhada inteira de vira-latas, quando uma boa parcela deles fatalmente os abandonará quando o animal se revelar inadequado para o que querem dele. É impossível manter dentro de casa um animal de temperamento inadequado para isso, e é impossível saber de antemão se um filhote de vira-latas terá ou não o temperamento de que se precisa nele. Se, quando chegar à idade adulta, o bichinho se revelar inadequado para ficar dentro de casa, ele vai sofrer e irritar o dono: vai destruir os móveis, vai criar o vício de latir o tempo todo etc.

Do mesmo modo, a adoção de vira-latas adultos é outro tapa-buraco tremendamente ineficaz, na medida em que não só o comportamento e o temperamento dos animais será quase igualmente imprevisível, mas o apego deles ao dono (e vice-versa) será muito menor que o que teriam se tivessem sido criados desde filhotes. A única medida que realmente ajuda a diminuir o problema dos cães de rua, aquém do sacrifício dos vira-latas, é sua castração em massa. Infelizmente são poucos os lugares que a fazem gratuitamente.

É inevitável que um porcentual enorme dos vira-latas revele-se, mais cedo ou mais tarde, inadequado e mal adaptado àquilo que o dono procura nos bichinhos. É para evitar esses transtornos que a humanidade gastou tanto tempo e trabalho na separação genética de filhotes, adequando-os a trabalhos e funções determinados. Um cão de raça perfeitamente adequada àquilo que o dono busca jamais se revelará um estorvo inútil, como acontece frequentemente com os vira-latas. É por isso que é quase impossível encontrar animais de raça pura ou mais ou menos pura em abrigos para cães rejeitados: o animal de raça corresponde às expectativas de quem o comprou em praticamente todos os casos.

Pessoas que moram em sítios ou em casas com quintais grandes podem e devem cuidar de um ou dois vira-latas, na medida em que, ainda que eles não sejam necessariamente adequados à função que se espera que os bichos desempenhem, eles dificilmente serão um estorvo grave, e merecem viver e ter um dono. É sempre possível “exilar” no quintal um cachorro que se queria para companhia dentro de casa, mas que se revelou inadequado para este fim. Já quem mora em apartamento ou casa pequena, por razões óbvias, deve evitar pegar vira-latas para criar; a chance de ter um problema sério em mãos e não ter como se desfazer dele quando o animalzinho chegar à idade adulta é maior que a chance de tudo dar certo com ele.

Individualmente, vira-latas são animaizinhos que merecem nosso carinho, mas suas capacidades e temperamento são sempre uma incógnita. Em conjunto, todavia, são uma praga que deve ser combatida pela castração em massa. Idealmente só haveria cães de raça; se fosse assim, não teríamos cães de rua transmitindo doenças e por vezes até mesmo atacando as pessoas. Os cães de raça são membros plenos por simbiose da sociedade humana, cães trabalhadores com papel pré-definido, produzidos de acordo com a necessidade do mercado pelos canis, que regulam as ninhadas pela demanda. Os canis são instituições essenciais para a sociedade, ao fornecerem a ela os animais mais adequados para os diversos usos, sem excesso nem falta.

A criação de filhotes de raça é a melhor maneira de fornecer cachorros a quem os quer sem agravar o problema dos cães de rua abandonados. É criminoso querer fechar os canis, como os californianos estão tentando fazer. Maus canis podem e devem ser punidos ou mesmo fechados, caso a caso, e é perfeitamente normal que haja algum controle pela sociedade das condições como os cães são mantidos neles e em qualquer outro lugar. Contudo, querer substituir os cães de raça por vira-latas é desperdiçar o trabalho de inúmeras gerações ao longo dos séculos em prol da melhor relação entre o homem e seus animais de estimação. É optar pela selvageria. Pegar para criar um vira-latas é uma loteria, e não é justo nem inteligente priorizar o duvidoso sobre o certo. A vítima maior será sempre a cachorrada; são os pobres bichinhos que acabam sendo maltratados e abandonados quando o dono descobre que levou gato por lebre.

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