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Mahatma Gandhi em foto de 1931, em Londres.
Mahatma Gandhi em foto de 1931, em Londres.| Foto: Elliott & Fry/Wikimedia Commons/Domínio público

Tudo hoje é espetáculo. Creio que se Guy Débord, que escreveu sobre a mercadoria como espetáculo, pudesse ver a situação atual, ele explicaria que a política tornou-se mercadoria, bem como a economia, e ambas hoje nada mais são que espetáculo. Um exemplo claro disso nos é dado pela queda espetacular da igualmente espetacular firma de corretagem FTX. O nome de seu dirigente maior, como em algumas peças de má ficção, já anunciava o que viria: Bankman-Fried, literalmente “Banqueiro-Frito”.

Mas não acabava aí o espetáculo, longe disso. Era-o também a aparência da figura, que procurava se apresentar não como sério profissional, sim como adolescente antenado: cabeludo, despenteado, mal-vestido... A coisa ia mais além, muito mais além: a dirigente de uma das inúmeras firmas que operavam debaixo do guarda-chuva da FTX, Caroline Ellison, do alto de sua aparência de bruxinha de desenho animado, anunciava aos quatro ventos a vida de orgias (no sentido mais estrito da palavra) da diretoria central da firma, em que os troca-trocas sexuais dignos de um “harém chinês” (sic) acompanhavam a contabilidade imaginativa, ousada, ou simplesmente ausente da corretora.

O encarregado da auditoria pós-falência da firma escreveu que jamais vira coisa do gênero. Não se sabe nem quantas pessoas trabalhavam na firma, que dirá quem são ou quanto ganhavam. Não havia livro-caixa; nem caixa um nem caixa dois. Dispêndios altíssimos eram autorizados por emojis (aquelas figurinhas de cara amarela), e as ordens da diretoria eram dadas por meio de aplicativos cujas mensagens, como as cartas secretas dos espiões, autodestruíam-se após lidas. Compras da firma eram registradas em nome de empregados ou parentes dos empregados. Os pais do chefão, ambos professores universitários (Professor Banqueiro e Professora Frita), ganharam mansões nas Bahamas. O troço, em suma, era uma zorra. Mas uma zorra espetacular.

As tais virtudes de hoje não são as de outrora, os bons hábitos. Hoje a virtude consiste em mostrar-se espetacularmente “virtuoso”, e o que torna uma pessoa virtuosa é sua (suposta) preocupação com uma listinha de temas

Afinal, um dos pontos principais do discurso do descabelado-em-chefe era o quanto era virtuosa sua firma. Lembrei-me até de uma “influenciadora” dessas, que minha nora deixou de seguir quando a viu se orgulhando de seus filhotinhos dizendo que “também, morando numa casa com tantas virtudes...”. Mas as tais virtudes de hoje não são as de outrora, os bons hábitos. Hoje a virtude consiste em mostrar-se espetacularmente “virtuoso”, e o que torna uma pessoa virtuosa é sua (suposta) preocupação com uma listinha de temas. A esquerda e a direita têm listinhas de temas diferentes, mas o mecanismo é o mesmo em ambas.

O chefão da FTX pregava uma coisa chamada “altruísmo efetivo”, que seria em tese diferente do altruísmo normal (ou seja, daquele que procura fazer algo pelos outros) pela sua suposta efetividade. Assim, ele fazia coisas como doar mais de US$ 1 milhão em máscaras e testes de Covid para as Bahamas. Coisa muito efetiva em conseguir apoio político para sua firma, certamente, mas fora isso não muito diferente da filantropia mais comum. Na verdade, importante mesmo era como isso se inseria num discurso que ele mesmo afirmou ser “esse jogo idiota que nós, ocidentais lacradores, jogamos, em que dizemos as coisas certas e todo mundo gosta da gente”.

Em tese, o dinheiro que ele não gastava com um barbeiro para dar jeito na juba e em lojas de roupas que combinassem seria “efetivamente” usado para o bem dos mortais menos afortunados. Na verdade, ele vivia numa mansão de mais de US$ 30 milhões, onde se dedicava a orgias e à montagem de relações supostamente semelhantes às dos haréns da antiga China (nada sei dos atuais; presumo que se referissem aos da China Imperial, decadente como o Ocidente atual). Sua fortuna também tinha outros usos, quiçá para ele efetivamente altruístas e altruisticamente efetivas: ele foi o maior doador às campanhas políticas da esquerda americana. Só o infame George Soros doou mais que ele. Parece haver também alguma ligação entre as finanças da tal firma e a corrupção que ora se alimenta de cadáveres de inocentes na guerra da Ucrânia.

Mas seu esquerdismo é de família: sua gentil mamãezinha tão acadêmica, Professora Doutora Barbara Fried, escreveu nove anos atrás (ou seja: antes de seu filho se enfiar nessa trapalhada, bem antes) que “a filosofia da responsabilidade pessoal arruinou a justiça criminal e a política econômica. Está na hora de deixar para trás isso de culpa [pessoal]”. Em outras palavras, criminosos seriam movidos por outras forças, sobre as quais eles não teriam controle, e seria uma maldade inominável tratá-los como se tivessem culpa por seus atos criminosos. Muito prático para seu filho por estes dias. Mas ela não deixa de ter uma parcela de razão: imagino que, tendo sido criado ouvindo esse tipo de coisa à mesa, tenha sido mais fácil para ele viver essa vida dupla em que o tal “altruísmo efetivo” justificava tanto o experimentalismo sexual (coisa bem tediosa, aliás: não creio que haja perversão que nunca tenha sido tentada) quanto o contábil.

Este caso, por mais espetaculoso e emblemático que seja, está longe, muito longe de ser único. O espetáculo da virtude há muito deixou para trás a virtude definida à moda antiga, aristotélica. Outro caso de espetáculo absoluto, sem consistência alguma, é o de Trump. Tratado como uma espécie de Messias por seus seguidores evangélicos e até pelo movimento pró-vida americano, ele já se manifestara a favor do aborto e era conhecido por trocar de “esposa” como quem troca de roupa, sempre substituindo a ex-modelo-e-manequim mais gasta por outra mais nova. Preferencialmente importando-as. Mas o que é a realidade de alguém que afirma ser apanágio dos ricos agarrar as moças pelas partes diante do espetáculo de um Messias azul-e-amarelo com a cara pintada de cor de abóbora?!

Quando, como previsível, o espetáculo trumpista fracassou, foi logo substituído por outro. Primeiro, o passeio da Carreta Furacão no Capitólio. Depois, a espetacular transformação político-midiática daquela patética palhaçada em tentativa de golpe de Estado. E, finalmente – em espetáculo digno de uma Leni Riefenstahl –, um discurso do novo presidente, com punhos cerrados e esgares de ódio, diante de uma fachada colorida de vermelho com soldadinhos por trás, condenando espetacular e espetaculosamente todo o espetáculo trumpista anterior. Espetáculo após espetáculo, tudo tornou-se espetáculo.

O espetáculo da virtude há muito deixou para trás a virtude definida à moda antiga, aristotélica

No século passado eram os ditadores que tendiam a se tornar mais espetáculo que substância, ainda que a substância fosse mais que suficientemente assassina. O Stálin conhecido pelos russos, por exemplo, era um pai firme, mas carinhoso. O mesmo poderia ser dito do Hitler dos alemães de então, do Mussolini percebido pelos italianos, e até mesmo do Getúlio para seu fã-clube.

No pós-guerra, contudo, inverteu-se em grande medida o sistema. O espetáculo passou a ser muitas vezes não o ditador, mas seu oponente – ao menos no Ocidente, ou para olhos ocidentais. Até mesmo na União Soviética, a denúncia do stalinismo feita por Kruschev fez com que jamais por lá se repetisse o tipo de espetáculo anterior: o secretário-geral do Partido Comunista passou a ser percebido como o burocrata-em-chefe, não mais como figura paterna substituta. No Ocidente, claro, aqueles que o Partido russo perseguisse é que passaram a ser os heróis. A ascensão de Mao e, mais tarde, dos demais dirigentes comunistas do Extremo Oriente – todos idolatrados à moda stalinista – facilitou também fazer no Ocidente espetáculos trágicos do que eram tragédias reais.

Um dos que mais souberam usar dessa necessidade ocidental de tudo reduzir a espetáculo foi Gandhi. Se houvesse continuado a usar ternos em vez de andar seminu, cobrindo apenas as partes pudendas com aquela espécie de fralda exótica e espetaculosa, ele não teria conseguido tornar a Índia independente. Seu exotismo, sua evidente diferença em relação ao público branco, bem-nutrido e rico do Ocidente, foi o fator mais essencial do sucesso de sua campanha.

O modelo de Gandhi foi, então, aplicado com sucesso a Mandela, na África do Sul. Ninguém em sã consciência apoiaria o regime racista do Apartheid sul-africano. Sua maldade sozinha, contudo, não era suficiente para construir um espetáculo. Daí a construção da imagem de Mandela, membro do Partido Comunista, mas também aristocrata da tribo Xhosa – que, ao contrário de muitas das demais, já estava naquele território muitos séculos antes da chegada dos brancos. Sua prisão pelo governo racista foi apresentada ao mundo como a mais completa injustiça. Foram varridos para baixo do tapete os muitos atos terroristas de seu grupo – inventor, aliás, do dito “micro-ondas”, técnica popularíssima em meio à bandidagem brasileira, que consiste em queimar pessoas vivas dentro de pneus. Para um bom espetáculo, afinal, é preciso um malvadão e um mocinho. Os muitos tons de cinza da realidade não se prestam a esse tipo de coisa e, assim como ocorrera antes com as falhas de todos os demais mocinhos espetaculosos da política, foram varridos para baixo do tapete.

Para tristeza de tantos brasileiros que se sentem no coração cidadãos europeus ou, ao menos, de Miami, nós também somos “exóticos”. Tremenda e espetacularmente exóticos, aliás. Não passaria pela cabeça de nenhum europeu ou americano ver o Brasil como parte do mesmo “Ocidente”, que consiste apenas dos cinco grandes países anglófonos e da Europa. Mesmo nessa, a metade oriental é um tanto ou quanto exótica para os olhos ditos ocidentais. Os brasileiros somos exóticos como os nativos países da Ásia ou da África; nossas mulheres saem às ruas vestidas apenas de plumas no carnaval, e – aos olhos da gringalhada – a vastíssima selva amazônica ocupa quase todo o país. Daí esse problema de sucuris devorando criancinhas nas capitais, imagino. Como são criancinhas “exóticas”, contudo, ninguém se preocupa muito. Muito pior seria se essa belíssima selva habitada por mulheres cobertas de plumas fosse destruída!

E é aí que entra um certo ex-presidiário. Enquanto aqui no Brasil todo mundo sabe que o sujeito é comprovadamente ladrão, enquanto aqui só alguém com a inocência de um general acreditaria num resultado tão anunciado pela parcialidade de quem contou os votos, lá fora ele é o Mandela da vez. O Gandhi do momento. O gnomo das selvas (sim, senhores: ele é a Marina Silva menos um dedo!), eternamente preocupado em preservar as matas puríssimas que recobrem este paiseco exótico, elas que despejam na atmosfera o precioso oxigênio respirado pelo Ocidente enquanto agarram e literalmente sequestram o gás carbônico que, na mitologia hodierna, causaria a mudança climática em curso. Sua prisão foi evidentemente injusta, obra dos malvados que não aguentam sua beleza, sua pureza, sua inocência primeva. O bolsopresidente, por sua vez, para quem só conhece o Brasil pelo filtro de uma mídia “internacional” que, quando se interessa por estas brenhas, só faz repetir o que a Globo proclama, é uma espécie de Mussolini dos trópicos, a quem só faltam a farda de porteiro de hotel, o bigodão e os óculos escuros, e que só pensa em devastar a divina mata que a todos protege e conduz.

Enquanto aqui no Brasil todo mundo sabe que um certo ex-presidiário é comprovadamente ladrão, lá fora ele é o Mandela da vez

É por isso que, quando foi anunciado o resultado da eleição, só o que se viu na mídia estrangeira foi celebração. O bom e exótico gnomo das matas estava de volta para, como um Curupira eneadáctilo, protegê-las dos malvados. O Povo das Florestas (nós todos; vai dizer que não sabia que em Curitiba, São Paulo e Rio as pessoas se deslocam para o trabalho pulando de cipó em cipó), gente pura, inocente e sincera, verdadeiros Bons Selvagens rousseaunianos, botou para correr o malvadíssimo fascista-de-extrema-direita que ameaçava o mundo inteiro com seu ânimo destruidor de matas.

Daí a tranquilidade com que a equipe de transição – em que cabe até o asqueroso pornógrafo Alexandre Frota – vem falando em desfazer tudo o que foi feito por esta bolsoadministração ora finda. Em cancelar no atacado seus decretos, reverter em bloco suas políticas. A questão não é um apoio popular que muito supostamente teriam (afinal, mesmo se acreditarmos na infalibilidade da apuração, foi uma minoria que votou no novo Mandela, e uma maioria que votou no Bolsonaro – tampando ou não o nariz – ou preferiu abster-se, votar em branco ou anular), mas o fato espetacularmente verdadeiro de que o mundo está em festa com o retorno do Bom Gnomo.

Quando foi anunciado o resultado da eleição, só o que se viu na mídia estrangeira foi celebração. O bom e exótico gnomo das matas estava de volta para, como um Curupira eneadáctilo, protegê-las dos malvados

Não importa se sua figura é uma fachada muito mais fina que a do descabelado com que comecei este texto. Não interessa se a maioria da população do Brasil sabe quem ele é e desaprova tudo o que ele representa. Não interessa sequer que as Forças Armadas, o Ministério Público ou uma esquadrilha de discos voadores comandada pelo ET de Varginha possam ter algo a obstar aos desmandos que se preparam. O que interessa é que qualquer risco ao espetáculo em curso será percebido lá fora pelas lentes do mesmo espetáculo. Por definição, os únicos que podem não se regozijar com o retorno do Gnomo Dedeta, do Bom Velhinho da Mata, são os malvadões. Os típicos generais latino-americanos, figuras macabras sempre vestidas com fardas de porteiros de hotel, óculos escuros e bigodões. Os fascistas-de-extrema-direita.

O mundo espera ansioso a grande festa da posse do seu mocinho. A grande festa do fim da ameaça global representada pelo pobre coitado do Bolsonaro, que só conseguiria mandar alguma coisa a partir da posse do novo Congresso. Este é o roteiro do espetáculo, e qualquer ameaça a ele será tratada como parte do mesmo espetáculo, tornando o Brasil (“merecidamente”, aos olhos de todos mundo afora; nisso até o Putin e o Biden estão de acordo) um pária internacional.

Diante de tão grandioso espetáculo, não é de se espantar que a vontade do povo brasileiro não conte em nada.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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