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Na acirradíssima campanha eleitoral atual voam pelos ares, como o insulto de longe mais usado, as acusações de fascismo. Mas o que é o fascismo, e, mais ainda, o que são essas acusações?

O fascismo é um filho do primeiro terço do século passado. Cabe lembrar, para o leitor de hoje, que aquele era um momento em que o mundo acordava embasbacado e se percebia ideológico. Fora da ideologia, aparentemente, não haveria salvação. Tudo indicava que a humanidade seria em muito pouco tempo, talvez dentro mesmo daquela geração, unida sob a égide de um sistema único e ideológico de vida, mais ainda que de governo.

As ideologias, comunismo e fascismo entre elas, são frutos tardios da (péssima) separação cartesiana entre uma realidade numerizável e inerte e um intelecto todo-poderoso. Para o ideólogo,  o que realmente importa não é a realidade tal como a vivemos no dia a dia, sim a ideia de como essa realidade poderia, e deveria, se tornar ao ser conformada à utopia que ele tem em mente. O mundo real era percebido por praticamente todos, naquele momento da história, como massa plasmável a ser informada por algum sistema que a tudo abarcasse, resolvendo magicamente todos os problemas sociais. Estes, por sua vez, eram resumidos, em cada tipo de pensamento ideológico, a um ou dois conceitos hipersimplificados (“luta de classes”, “internacionalismo apátrida”). A ideologia, no fim das contas, não passa de uma simplificação grosseira da realidade, tentando resumir toda a riqueza, todos os tons de cinza de que a cambiante sociedade humana é dotada, em um problema simples, com uma solução igualmente simples.

Tentava-se, em suma, aplicar à história (e a suas filhas sociologia, política, economia etc.) supostas leis, análogas às leis da física newtoniana. Newton preparara o caminho na física, sendo logo seguido por Darwin na biologia (que já é bem mais complexa que o que o próprio Darwin percebia então), e Marx julgava tê-lo feito em relação às leis da história. A história teria passado a ser não apenas conhecida, mas previsível. A luta de classes, para os marxistas – e eles eram muitos –, seria o seu motor, e um breve exame da situação político-econômica em busca de situações de exploração levaria a uma capacidade inaudita de prever os rumos que a história tomaria. Marx, evidentemente, estava errado; o proletariado (a imensa parcela da população que está a um salário de distância da miséria, como eu e talvez você, caro leitor) não se levantou, como Marx predissera que inexoravelmente o faria, contra a exploração por parte dos proprietários dos meios de produção. Ao contrário, até: o comunismo só conseguiu ser implantado em sociedades agrícolas semifeudais, como a Rússia tzarista, a China, o Vietnã, Cuba etc. E, ironicamente, as condições de trabalho asquerosas que levaram Marx a prever um levante revolucionário na Inglaterra do fim do século 19 hoje só podem ser encontradas em países governados por um partido comunista.

Mas naquele momento tudo isso era ainda crível. A Rússia acabava de se tornar comunista, e não se sabia ainda a que horrores de ditadura e miséria esse triste acontecimento levaria. Ao contrário; ela parecia, para muitos, ser uma luz a apontar o caminho para o fim da exploração do homem pelo homem. Um problema, no entanto, persistia: a teoria marxista apontava que o proletariado deveria se unir através das fronteiras internacionais contra a burguesia opressora. Em outras palavras, o proletário italiano e o alemão teriam mais em comum que o proletário e o burguês da mesma nacionalidade. Qualquer coisa que variasse disso seria devida a uma falsa consciência por parte do proletário, a uma forma de exploração intelectual tão grave quanto a econômica.

Na Itália, contudo, especialmente com as confusões advindas da Primeira Guerra Mundial, um jovem jornalista ligado ao Partido Socialista percebeu que o patriotismo (e sua forma deturpada, o nacionalismo) era ainda uma força real. Não adiantava pregar aos proletários sobre sua condição; os italianos preferiam outros italianos, ainda que burgueses, a seus supostos confrades de luta alemães. Este jornalista, Mussolini de nome, decidiu, aos trancos e barrancos e movido antes por insights que por qualquer tipo de raciocínio coerente, criar uma força que unisse a defesa do proletariado em que apaixonadamente acreditava e o nacionalismo que percebia ser uma barreira intransponível para o socialismo clássico. Assim surgiu o fascismo, cujo nome deriva da palavra italiana para “feixe”: a ideia seria que, unidos, os proletários italianos seriam fortes assim como um feixe de gravetos é muito mais forte que cada graveto individual. Como cantou no Brasil outro coletivista, Chico Buarque, “todos juntos somos fortes; somos flecha e somos arco. Todos nós no mesmo barco, não há nada a temer. Ao meu lado há um amigo que é preciso proteger”. Foi justamente esta mentalidade coletivista, informada pelo estatismo igualmente socialista, que deu a base, por assim dizer, ideológica do fascismo. “Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado.” Este poderia ser perfeitamente o moto de um partido socialista ou comunista (a diferença, no marxismo, é que o socialismo é imposto à força enquanto o comunismo surgiria magicamente depois dele), mas era o resumo mussoliniano de sua ideologia.

Mussolini não era um intelectual, sim um prático revolucionário. As suas ideias eram confusas, e sua versão mais purificada e explicada, com as rugas aplainadas, é obra de seus seguidores, muito mais que dele. Como escrevi anteriormente, ele agia por insights, pelo cheiro de sangue. E este cheiro o levou a um sistema que herdava do socialismo o coletivismo forçado e centrado no Estado, ao qual se somava uma sociedade corporativista – parcialmente como forma de atrair o eleitorado católico que seu centralismo afastava –, com sindicatos fortes ao ponto de terem, enquanto sindicatos, representação política direta e, como tudo o mais naquele tempo em que enormes contingentes de ex-soldados desmobilizados da Primeira Guerra vagavam sem emprego pelas ruas da Europa, violência. Muita violência. Assim como haviam feito os comunistas e socialistas antes dele e com ele, Mussolini organizou legiões de apoiadores jovens, fortes e armados – os “feixes” –, com o objetivo de infligir terror à oposição. Fez da modernidade e de uma estética inovadora um símbolo de sua força, com uniformes vistosos, camisas pretas, marchas a passo de ganso, e mesmo a saudação retomada dos tempos da antiga glória romana, com o braço direito esticado a 45 graus e a palma da mão voltada para baixo. No tocante à economia, para assegurar um controle completo da iniciativa privada pelo Estado sem, contudo, matar a galinha dos ovos de ouro ao transformar tudo em serviço público, mais valia ter uma ou duas redes de supermercado que miríades de mercadinhos, dois ou três bancos que milhares de bancos pequeninos etc.

A violência inerente aos métodos coletivistas todos – fascismo, comunismo e socialismo – era percebida então como, literalmente, uma demonstração de força, de pujança, de apoio jovem. A velhice não interessava: o futuro seria dos jovens. Mais ainda, dos jovens apoiadores desta ou daquela ideologia. Nisso todos os coletivismos eram gêmeos.

Outro aspecto que também era onipresente era o princípio do líder: cada coletivismo, cada país coletivista, tinha e teria de ter um líder inconteste, que seria uma verdadeira encarnação da ideologia. Na Itália era Mussolini, que ao assumir o poder assumiu o título de “Duce”, “líder”, “condutor”. Na União Soviética, reinava então o bárbaro ditador Stálin, o “homem de aço”. Para este, o surgimento do fascismo mussoliniano foi um presente dos demônios a que servia. Enquanto o discurso comunista clássico de revolta contra uma “burguesia” proprietária dos meios de produção, porém sem rosto, era bastante difícil de vender, muito mais fácil era pintar como bicho-papão a Mussolini, personagem vagamente ridículo e defensor de teses em muitos aspectos tão próximas das stalinistas que apontar para as poucas diferenças facilitava tremendamente o serviço da propaganda ideológica.

No Brasil, tivemos uma versão brasileira (logo bagunçada, graças a Deus) do fascismo no Integralismo de Plínio Salgado, além de um uso velhaco da estética fascista e de muitos elementos fascistas de governo por parte de Getúlio Vargas, o avô político do PT. A nossa legislação trabalhista, inclusive, foi importada por ele tal e qual da Itália fascista, o que torna ainda mais engraçadas para quem conhece história as veementes acusações petistas de “fascismo” feitas contra quem quer que queira mexer naquele entulho totalitário.

Na Alemanha, um fã de Mussolini, mas muito mais louco e mais violento que ele, subiu ao poder: Hitler, cujo nome até hoje é considerado sinônimo do mal. Stálin, a princípio, fez com ele um pacto de não agressão, combinando até mesmo a partilha da Polônia católica entre eles. Mais tarde, Hitler o traiu, e a Segunda Guerra Mundial viu-os em campos opostos.

O discurso stalinista, que desde a ascensão de Mussolini já adotara o fascismo como bicho-papão generalizado, ao ponto de apodar de “fascista” basicamente tudo o que não fosse stalinismo puro e duro, inclusive o trotskismo (doutrina igualmente comunista de seu colega de revolução russa Trotsky), pisou mais forte ainda no acelerador. Durante a Guerra Civil Espanhola, a propaganda comunista (comandada desde a Rússia pelo próprio Stálin, a quem aliás o governo socialista da República espanhola deu de presente todas as reservas de ouro daquele até então riquíssimo país) simplificou ainda mais a realidade dos fatos, classificando como “fascista” toda oposição, interna ou externa, às tropas sob comando direto de Moscou. O grande escritor inglês George Orwell alistou-se nas Brigadas Internacionais da República espanhola, movido pelo discurso de luta contra o fascismo. Chegando lá, aos poucos foi descobrindo que a dominação stalinista não deixava nada a desejar ao suposto perigo fascista. Como conta em seu excelente livro Homenagem à Catalunha, ele conseguiu fugir às vésperas de ser preso pelo crime de ter lutado numa brigada trotskista, mesmo considerando-se apenas um “socialista democrático”. De volta à sua Inglaterra natal, escreveu a magnífica acusação do comunismo 1984.

Assim, temos basicamente dois sentidos para o termo “fascismo”. O primeiro é um sistema nacionalista totalitário de governo e ordenação social, em que tudo é centralizado no Estado, em que a economia é concentrada nas mãos de uns poucos apoiadores do regime, em que o partido no poder tem milícias irregulares dispostas a bater nos opositores, em que a população é representada por sindicatos fortes e politicamente ativos (do lado do governo, claro), e, finalmente, em que uma “identidade visual” forte, para usar o termo de hoje, parece fazer daquele partido algo onipresente. De tudo isso, no Brasil de hoje, só o que falta à esquerda é o nacionalismo: os sucessivos governos petistas marcaram item por item da lista acima, do “exército de Stédile” à onipresente estrela vermelha do Partido, passando pela ascensão de Eike Batista (o capitalista do PT), o uso político dos sindicatos (onde o próprio Lula começou sua carreira) etc.

O outro sentido do termo “fascista”, por outro lado, é simplesmente uma acusação gratuita lançada pelos stalinistas (como Manuela D’Avila, candidata do Partido Comunista a vice-presidente na chapa de Haddad) contra todo e qualquer pensamento que não se alinhe completamente com o deles. Nas eleições anteriores, FHC, Alckmin e até mesmo Marina já foram “fascistas”. Hoje é a vez do Bolsonaro. Trata-se, neste contexto, de um termo que não quer dizer nada. É simplesmente uma acusação de desobediência a um partido que não é o da pessoa acusada. É um pouco como a acusação de “incréu” feita por um jihadista a quem quer que não leia o Islã como ele, independentemente da religião do acusado.

A única serventia deste sentido do termo, na verdade, em um momento como o atual, é apontar o pertencimento do acusador a uma vertente stalinista de pensamento. Acusa de fascista quem é stalinista, independentemente de o acusado ter ou não qualquer coisa a ver com o fascismo clássico. Trata-se de mero flato vocal, desprovido de sentido.

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