• Carregando...
Força, bolinhas e bolotas
| Foto: Michal Jarmoluk/Pixabay

Sou de outro tempo, e confesso que quando vejo um rapaz com a barriga aos gominhos meu primeiro pensamento é que deve se tratar de um trabalhador braçal. Eu já era (sim, fui) atleta quando primeiro surgiu na cultura popular a estranha aparência dos ditos fisiculturistas, com o filme Conan. Lembro, inclusive, que no começo do filme explicava-se o corpo do então esculpidíssimo Arnold Schwarzenegger colocando-o como trabalhador escravizado, equivalente humano de uma besta de carga. Atletas, sabia eu bem, não tinham aquela aparência bizarra. Não tinham braços com bolotas, seios salientes, nenhuma dessas coisas estranhas. O resultado é que jamais me passou pela cabeça a hoje quase permanente confusão entre força física e corpo deformado pelo fisiculturismo.

Esta forma de loucura não muito mansa hoje vai mais longe ainda. Já vi incontáveis vezes por essa vasta virtualidade que nos cerca um degrau ulterior de confusão, em que o corpo às bolotas é tomado não apenas por dotado de força física, mas também por representar a força interior a que a moral tradicional chama “fortaleza”. Está na moda responder às muitas negações de constantes ontológicas que um lado da guerra cultural vem fazendo com releituras pós-modernas do que é negado. Assim também a masculinidade vem sofrendo adaptações teóricas delirantes. Ora, a fortaleza, para os gregos, era sinônimo de masculinidade. Tanto para eles quanto para nós, latinos, no entanto, a força física jamais foi um seu sinônimo. Ao contrário, até: para os gregos, as coisas que em diversas releituras pós-modernas passam por sinais de virilidade (pênis volumoso, músculos hipertrofiados, essas coisas) eram tidas por sinal de animalidade, de rebaixamento, de negação da própria condição humana. Coisa fácil quando o trabalho pesado, que realmente deforma o corpo, era feito por pessoas escravizadas.

Na nossa atual fluidez e confusão, mormente nas versões cada vez mais delirantes que dominam os algoritmos da pós-modernidade virtual, entretanto, tudo virou uma só maçaroca de noções sem sentido. O resultado é que se vê imagens de sujeitos levantando halteres para representar, por exemplo, a “força” necessária a um cavalheiro ou pai de família, sem se dar conta de que tal força não é física, sim mental ou espiritual. E, mais ainda, que não se trata de mera “força” como a que têm as bestas-feras, sim de fortaleza. A virtude cardeal – e dom do Espírito – da fortaleza não diz respeito a quantos quilos o sujeito levanta na academia, sim à sua capacidade de enfrentar as adversidades. Tem muito mais fortaleza – ou “força” – o rapaz que se levanta cedo a cada dia para prover o pão de cada dia de sua família que o marombeiro todo às bolotas. Tem fortaleza quem não se deixa abater pelas vicissitudes da vida, e continua em frente no rumo que percebe como o correto. Tem fortaleza quem não cede ao mal, não cai nas tantas tentações que sempre nos rodeiam.

A virtude cardeal – e dom do Espírito – da fortaleza não diz respeito a quantos quilos o sujeito levanta na academia, sim à sua capacidade de enfrentar as adversidades

Em termos morais, a força física não tem valor em si. A saúde – que nos dá alguma força física, ou, antes, cuja ausência a retira – tem valor indireto, na medida em que sem saúde ninguém consegue cumprir seus deveres de estado. Mas a força física, em si, a capacidade de levantar tantos quilos em tal máquina de academia, ou coisa que o valha, é algo moralmente neutro, que não fede nem cheira, a não ser quando algum dever a requer. Destarte, o rapaz que ganha o pão de cada dia pelo esforço físico – o trabalhador braçal com quem ainda confundo muitos marombeiros – precisa de força física para desempenhar seu trabalho. Ela, assim, tem para ele o mesmo valor que, por exemplo, a botina ferrada, o capacete ou a habilidade com um fio de prumo: sua ausência seria um obstáculo ao desempenho de suas obrigações.

Mas eis que a confusão dominante dá ainda outro pulo ao confundir força física real, aproveitável na vida cotidiana, com hipertrofia muscular localizada, como a do Schwarzenegger. Vi por estes dias uma fotografia de um pobre sujeito com tamanha hipertrofia do tronco e braços que mais parecia um triângulo sobre dois palitos. As pernas dele, que eram simplesmente normais, pareciam esqueléticas em comparação aos braços. Estes, por sua vez, eram tão absurdamente hipertrofiados que acho bastante improvável que o sujeito tenha a capacidade de movimento necessária para lavar as próprias costas. Na verdade é difícil imaginá-lo a bater palmas, tão deformado está.

Salta à vista que aquilo não é natural: para conseguir ficar assim todo às bolotas, o sujeito certamente precisa envenenar-se com esteroides e demais “bolinhas” químicas. Veem-se nas farmácias potes plásticos enormes cheios das porcarias que essa pobre gente, em seu vício, acrescenta ao peito de frango e batata-doce de que se alimentam. O objetivo daquilo tudo é esculpir o corpo conforme a vaidade do sujeito, criando hipertrofias localizadas que lhe deem aquele formato. Ora, exatamente por serem localizadas, tais hipertrofias em nada acrescentam à capacidade física do sujeito. Lembro-me bem como eu mesmo, nos meus tempos de ciclista sério, precisava preparar-me fisicamente por uns poucos meses antes de partir para viajar a pé. Eu tinha, então, o hábito de andar de uma cidade a outra pelo mato ou pela praia, em viagens por vezes de semanas, carregando nas costas tudo aquilo de que precisasse. Meus muitos músculos de ciclista, no entanto, não englobavam todos os músculos do caminhante; ao caminhar um pouco mais sem preparação, eu rapidamente tinha dores fortes no tornozelo, pela simples razão de não ter ali músculos equivalentes aos do resto das pernas. É o que aconteceria com um fisiculturista que precisasse realmente fazer força, e ocorreria em escala ainda maior pela extrema arbitrariedade dos músculos hipertrofiados, escolhidos única e exclusivamente por razões estéticas. Ou antiestéticas.

Conheço um rapaz que – tendo sobrevivido na adolescência a uma pancreatite aguda – resolveu tornar-se “monstrão” (sic). Injetava-se com toda espécie de porcaria que comprava no mercado negro, e conseguiu, realmente, tornar-se algo quase tão feio quanto o célebre governador da Califórnia. Um belo dia, no entanto, a casa caiu: seu pâncreas já fragilizado não aguentou o veneno com que o rapaz se injetava, e lá se foi ele, morre-não-morre, pro hospital. Parou com aquela imbecilidade, para não morrer, mas nunca mais postou fotografias nas redes sociais, envergonhado de sua aparência mais humana e menos monstruosa.

Além dos problemas físicos causados por esses venenos e da imbecilidade de uma “escultura” de si que na prática diminui a capacidade física da pessoa, ainda há outros efeitos colaterais. Espinhas pelo corpo todo – na contramão da busca vaidosa duma (anti-) estética monstruosa – e atrofia da genitália, negando na prática a hipermasculinidade teoricamente buscada na monstruosidade, são alguns efeitos físicos colaterais. Outro, pior ainda, e diretamente contrário à virtude da fortaleza com que confundem a moda imbecil do corpo às bolotas, é a alteração de temperamento. Quem se envenena para hipertrofiar alguns músculos perde em grande medida a racionalidade, e procura briga o tempo todo. Mau negócio, especialmente se o “monstrão” encontrar pela frente alguém que saiba se defender; afinal, a velocidade e a capacidade física real dele são muito menores que as de pessoas normais, que dirá de atletas treinados para a luta.

De um tempo para cá apareceu outra modalidade de “marombagem”, o “cross-fit”. Ao contrário do fisiculturismo movido por bolinhas em busca de bolotas estrategicamente espalhadas por um corpo desprovido de saúde, trata-se de uma forma de exercício “funcional”. Em outras palavras, é uma modalidade de exercício em que se busca realmente aumentar a capacidade física, não apenas inflar umas bolotas corpo afora. Contudo – talvez em virtude do desregramento generalizado de nossos tempos – isto no mais das vezes é feito de forma exagerada. Uma fisioterapeuta especializada em lesões esportivas com quem já me tratei tem sua clínica perpetuamente lotada de adeptos de tal modalidade de exercício. Mesmo assim já é um começo, ainda que, como apontei acima, não haja virtude alguma em ter grande força física se nossos deveres de estado não a requerem.

A virtude da fortaleza, da “força” que define a masculinidade, é treinada não puxando ferro, mas disciplinando-se, eliminando as frescuras e dependências desnecessárias e, mais que tudo, negando-se em benefício do próximo e, mais ainda, do Bem

Por outro lado, quando a coisa é feita como forma de lazer – o que no fundo deve sempre ser a função primeira do esporte – e não se a leva a exageros daninhos à saúde, não há tampouco mal algum. Ao contrário, evidentemente, da busca desregrada de “esculpir” vaidosamente o corpo, mais ainda quando se leva em consideração os efeitos colaterais de tal insanidade. A imbecilidade não é necessariamente pecaminosa, mas a vaidade o é, e quem gosta de admirar-se ao espelho fazendo poses para expor bolotas semoventes certamente sofre em grau terminal deste vício.

Em todo caso, nada disso tem o que quer que seja a ver com a virtude da fortaleza, da “força” que define a masculinidade. Esta é treinada não puxando ferro, mas disciplinando-se, evitando mimar-se, eliminando as frescuras e dependências desnecessárias, aceitando de bom grado as penitências que a Divina Providência nos proporciona e, mais que tudo, negando-se em benefício do próximo e, mais ainda, do Bem. Quem tudo quer para sim, quem só pensa em si mesmo ou mesmo quem se coloca à frente dos demais, principalmente dos seus dependentes, é alguém sem força e sem virilidade. É viril e forte o homem que cede a primazia à esposa e aos filhos, o homem que não precisa de agrados, o homem que não se permite frescuras. A vaidade, o orgulho, a gula, a luxúria, a preguiça e todos os demais vícios são as fraquezas contra as quais a fortaleza nos deve proteger.

Como com qualquer outra virtude, a fortaleza é antes de tudo um hábito. Ela também é, todavia, algo cuja perfeição pode ser recebida como graça. Em todo caso, sendo um hábito ela requer constante disciplina, constante atenção e, principalmente, repetição ao longo do tempo. Não é da noite para o dia que alguém pode conquistá-la, e o esforço real envolvido é certamente muito maior que o de quem passa horas na academia a admirar-se no espelho enquanto bufa em máquinas cientificamente planejadas para deformar o corpo sem reformar a alma. A fortaleza, como qualquer outra virtude, é antes de tudo uma virtude da alma. Somos, é verdade, corpo e alma (nem um corpo que tem uma alma, nem uma alma que tem um corpo, mas uma união num só ser de corpo e alma), e a virtude da alma torna-se assim também virtude do corpo. Quem desenvolveu a virtude da fortaleza, por exemplo, certamente recorrerá muito menos que os que não a têm a analgésicos e demais paliativos químicos, por ter-se habituado a suportar o sofrimento e a privação sem lamuriar-se.

Qualquer asno ou gorila tem força física; só um ser humano pode ter fortaleza. Só um ser humano pode aspirar a ser melhor, e dedicar a vida a tal aspiração

Isto é contudo um efeito colateral, por assim dizer. Ao contrário da escultura do próprio corpo, em busca de uma vaidade tão leviana quanto passageira, ou mesmo da busca da força física dita funcional, a virtude serve, mais que tudo, ao aprimoramento da pessoa. Da pessoa como um todo, corpo e alma. Sem que ao menos busquemos nos aprimorar, a tendência é que pioremos. Ceder à vaidade (ou à gula, ou à luxúria...) é algo que nos enfraquece e, no fim das contas, nos torna menos homens. Menos humanos. Menos felizes, plenos ou realizados. A vaidade, como todos os demais vícios, é uma busca do infinito onde ele nunca poderia estar. Nem os loucos que fazem da cirurgia plástica uma constante da vida, sempre em busca de uma imagem inalcançável, chegam a saciar sua busca de uma suposta perfeição. Quem o faz numa academia tampouco a poderia alcançar. E quem a alcançasse – missão impossível – em poucos anos se veria murcho e flácido pelo peso da idade. Quando falecesse e perdesse o corpo, o que teria de bom na alma a carregar?

Somos corpo e alma, mas é esta que dá àquele sua coerência, e é ela que faz de nós mais que feras ou bestas de carga. Qualquer asno ou gorila tem força física; só um ser humano pode ter fortaleza. Só um ser humano pode aspirar a ser melhor, e dedicar a vida a tal aspiração. Afinal, somos a única criatura que busca o infinito.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]