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Na segunda-feira da semana passada, dia 20 de novembro, uma passeata racista, com faixas explicitando a mais pura doutrina nazista, tomou conta da Avenida Paulista. Hitler há de ter sorrido do Inferno, feliz ao ver uma enorme faixa com os dizeres “miscigenação também é genocídio” sendo carregada orgulhosamente por gente que, como ele ensinou a fazer, define a própria identidade em termos raciais. Eu sabia que a coisa seria feia, mas não imaginava que iria tão longe o desejo de emular aqueles que a História consignou como sinônimo de puro mal. Assustador, e mais ainda por ocorrer no Brasil.

A passeata, ressuscitando sem vergonha alguma o discurso da propaganda nazista idealizado por Goebbels, tinha como objetivo reforçar a consciência de raça, que no nazismo equivale à consciência de classe do marxismo ortodoxo. Para o nazista, alemão ou tupiniquim, o que define o ser humano é o pertencimento a um conjunto racial, uma coletividade unida por uma suposta ascendência comum e por características fenotípicas. Os nazistas originais chegavam a medir os crânios e narizes, no delirante afã de distinguir fenotipicamente entre judeu e alemão “de raiz”. Já os modernos preferem ser mais discretos, limitando-se a exigir fotografias 10X15 dos candidatos a cotas em vestibulares e concursos para que um tribunal racial possa procurar elementos fenotípicos que identifiquem a “raça” a que supostamente pertenceria cada um.

Raça, senhoras e senhores, não existe. Mais ainda: raça é uma invenção asquerosa do pior da pseudociência europeia e norte-americana do final do Século XIX, com o objetivo declarado de separar as pessoas entre si para fazer baixa política e negar direitos a parcelas inteiras da população. Todo racista – e racista é quem acredita que raça existe – acha que a própria “raça” é uma comunidade à parte, oprimida e injustiçada pelas demais. Foi assim que surgiu o nazismo: Hitler pregava que a “raça” ariana, à qual pertenceriam os alemães de raiz, estaria sendo explorada pela “raça” judaica, que dominaria o capital internacional e, curiosamente, ao mesmo tempo se locupletaria dos serviços estatais de bem-estar social, dada a pobreza da imensa maioria de seus integrantes.

A comunidade de raça, assim, desempenha nos delírios nazistas exatamente o mesmo papel que a comunidade de classe no marxismo. Para o marxista, o proletário é oprimido pelo burguês, e deve adquirir consciência disso; o nazista apenas troca o proletário pelo ariano e o burguês pelo judeu, e pronto: algo ainda mais asqueroso que o marxismo consegue se alevantar do meio das fezes mentais de uma população idiotizada. O mesmíssimo fenômeno vem ocorrendo novamente, com assustadores apelos até mesmo oficiais a uma “consciência de raça” que, da última vez que apareceu, matou milhões de inocentes apenas por pertencerem à “raça” errada. A consciência de raça levaria, agora exatamente como nos discursos do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães da década de 1930, a perceber como uma forma de genocídio a miscigenação, ou seja, a “mistura de raça, mistura de cor” que abomina a Madame do samba de João Gilberto. A raça tem que ser mantida pura. Sangue e solo! É um crime misturar, “diluir” o sangue puro da raça superior – que é sempre ao mesmo tempo a raça explorada, para fazer com que o senso de justiça deturpado do candidato a membro de tropa de assalto se exalte mais e mais.

Esse horror destruiu a civilização europeia no século passado. Esse horror fez da Alemanha –  um país culto, a terra da música – um sinônimo de selvageria. Esse horror mereceu o forte combate de tropas do mundo todo, inclusive do Brasil. Meu próprio avô foi um dos que estiveram lá na Europa, de armas na mão, para derrubar essa sucursal do Inferno que lá se estabeleceu a partir deste mesmíssimo discurso racista que hoje toma conta da Avenida Paulista e ganha até mesmo feriado em muitas partes do país.

Consciência de raça tem nome. Chama-se racismo, e é uma abominação. “Miscigenação”, graças a Deus, é uma piada no Brasil. Há alguns poucos países, normalmente ilhas como a Islândia e o Japão, cuja população é genotipicamente semelhante, permitindo e facilitando o surgimento de delírios de “raça”. Não é o caso do Brasil. Nós somos a mistura de gente trazida na marra de todo canto da Mãe-África com nativos de toda a América do Sul, tudo isso em cima de uma população portuguesa composta de gente de todo o Mediterrâneo misturada com enorme contingente de godos, sobre um substrato de celtas. Em outras palavras, Deus nos deu a graça de sermos “miscigenados” de origem. Já nascemos misturados.

E nossa cultura aceita de muito bom grado – na verdade nem repara que existe – aquilo que a natureza humana pede de por si: o amor pelo diferente. Aqui há poucas louras; o resultado é que elas são consideradas bonitas, como as morenas o são na Escandinávia. E assim a loirinha se casa com o moreno, a baixinha se casa com o grandão, a gordinha com o magrelo, a filha de japoneses com o trineto de africanos e neto de italianos, e é exatamente assim que fazemos um lindo Brasil. Um Brasil em que nem o mais alucinado dos nazistas conseguiria alegar ser de “raça pura”. Um Brasil em que não existem nem podem existir horrores como “consciência de raça”, porque só um louco, cego e delirante conseguiria inventar “raças” no meio desta mistureba toda de gente vinda de todas as partes do mundo, com todas as características fenotípicas possíveis.

Na casa do meu pai, havia pendurado na parede um capacete nazista com um furo de bala, que meu avô trouxe da Europa como recordação ou troféu de batalha. É essa mentalidade antinazista, antirracista, que precisamos levantar novamente em nosso povo, que é um povo único. Não existe aqui “povo ariano”, “povo negro” nem nenhuma outra separação artificial e criminosa entre seres humanos. Somos todos de uma só raça, que é a raça humana, e é disto que temos que ter consciência. Raça quem tem é cachorro. Somos gente.

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