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O Crucificado
| Foto: Wikimedia Commons

No meio do lixo que impera nas redes sociais, de vez em raro aparece alguma coisa realmente boa. Foi o caso de uma postagem feita pela belíssima Dayane Flaubert, que apontou – cito de memória – que enquanto os pagãos, ao ver o Crucificado, revoltam-se por verem n’Ele a própria (suposta, supostíssima!) inocência, os cristãos veem n’Ele a própria culpa. Sabemos os cristãos que Ele foi crucificado por nós, assumindo as nossas culpas sem ter qualquer culpa própria. Esta diferença é crucial; é ela que explica, por exemplo, a facilidade com que os pagãos que enchem as ruas e as redações dos jornais não têm pejo algum de representar, por exemplo, Lula como o Cristo. O que para nós, cristãos, é uma blasfêmia inominável (afinal, Lula decididamente não padeceu pelos nossos pecados!, e só é deus lá pras negas dele) para eles é apenas um mecanismo evidente de representação da (novamente suposta, supostíssima!) inocência do apedeuta eneadáctilo.

Lembro-me de uma defesa que li da presença do crucifixo nos tribunais, cujo autor afirmava, com razão, que era o caso mais famoso de julgamento injusto em toda a história da humanidade. E realmente o foi. Mas o passo adiante, que é perceber naquela execução não apenas a execução do Justo por antonomásia, mas um sacrifício cujo sacerdote e cuja vítima são o próprio Homem-Deus, isso é um privilégio dos cristãos. E é realmente esta diferença crucial que mais separa o cristão do pagão: o pagão se crê justo, e por se crer justo crê-se injustiçado pelo mundo. Já o cristão sabe-se culpado, e por saber-se culpado sabe-se objeto de misericórdia divina, pois tem plena consciência de que não merece um décimo do que tem, e, mais ainda, merece punições e penitências muito maiores que as que Deus lhe dá.

Trata-se, na verdade, de um caso de expectativas infundadas por parte do pagão. Comentava outro dia com uma amiga muito querida que seu hábito de reclamar o tempo todo do comportamento dos demais motoristas na rua é baseado na expectativa infundada de que os demais motoristas vão dirigir cuidadosamente num trânsito ordenado, como se estivéssemos na Suíça ou na Holanda. Ora, esta é uma expectativa absurda para a nossa amada terra brasílica.

O pagão se crê justo, e por se crer justo crê-se injustiçado pelo mundo. Já o cristão sabe-se culpado, e por saber-se culpado sabe-se objeto de misericórdia divina

Já eu, do alto (ou do fundo) de minha experiência de perito criminal aposentado, tendo atendido incontáveis casos de barbaridades no trânsito, parto do pressuposto elementar de que todos os outros motoristas, se não estiverem firmemente decididos a me matar, estão pelo menos bêbados e incapazes de se orientar pelas regras do trânsito. Assim, quando pego carona com alguém mais furioso, que pergunta retoricamente a cada dois minutos “o que aquele carro está fazendo”, respondo, inabalável, “barbeiragem, uai”. Afinal, é isso que – por definição – fazem todos os motoristas, eu inclusive. Tendo saído de casa com tal expectativa nada me surpreende no trânsito, e nele não acho razão alguma para reclamar.

Já o pagão, na vida quotidiana, exatamente por estar convencido de sua inocência, de sua justiça – ou mesmo Justiça, arrogando-se um atributo divino como soem fazer os pagãos –, considera cada sofrimento, cada pequeno padecimento, do barbeiro que o fecha no trânsito à doença que o deixa de cama ou o calor que o exaure, como uma injustiça gigantesca, um ataque ao próprio fundamento de sua existência. Ele é inocente, e está sendo punido! Onde está o deus que não faz nada a respeito disso?, esse deus relapso!

A postura cristã é diametralmente oposta, e a leitura que o cristão faz do crucifixo, exatamente por isto, é igualmente oposta. Para o cristão, ver o Crucificado significa ser lembrado dos próprios pecados; significa, mais ainda, como na famosa Cruz de La Salette, saber-se o responsável pelos martelos e pelos cravos que perfuram as mãos e os pés do doce Redentor. São nossos pecados, nossa não inocência, a causar as dores do Justo. E, do mesmo modo, ricamente temos no outro lado da Cruz de La Salette a torquês que Lhe arranca os cravos, nas nossas boas ações.

Mas que ação nossa seria boa o bastante para poder ser comparada com a do Sacrifício do próprio Homem-Deus?! Nenhuma, é claro. E é por isto que a consciência de nossos pecados sempre sobrepuja qualquer consciência de uma virtude sempre insuficiente, levando-nos sempre a querer melhora. Já o pagão, exatamente por estar convencido de sua própria inocência, de sua própria Justiça, considera o aprimoramento pessoal (este nome pós-moderno da velha e boa santificação) uma opção sempre presente, mas no fundo desnecessária. Afinal, para que melhorar quando já se é Justo, quando já se é inocente, quando já se é desprovido de pecados?! E daí o próprio messias neopagão, Lula, pôde afirmar-se “sem pecado”, e não tirar rigorosíssimo algum benefício espiritual do encarceramento. Não é só ele, mas é todo pagão que assim se percebe.

E é por isso, por esta certeza fundamental da própria inocência e justiça, que nos vêm, por exemplo, as “problematizações” esquerdistas. Se à ausência fundamental de culpa ainda se une uma punição injusta motivada por, por exemplo, a cor da pele, as preferências sexuais ou mesmo o sexo, nada mais justo que bradar aos quatro ventos que se está sendo injustiçado. A problematização, assim, simplesmente não pode ter fim; ela está na essência mesma do paganismo pós-moderno. Sempre haverá uma injustiça a mais sendo cometida contra alguém que é a própria Justiça, como cada pagão crê-se ser. A dor nos pés ao caminhar será fruto de malvadas pancadas, injustamente desferidas contra a sola dos puros pés do inocente pelo duro chão. A temperatura do ar será injusta para com as puríssimas glândulas sudoríferas do inocente pagão.

Já o cristão, voltando à nossa comparação, por saber-se pecador, sabe também que nenhum dos bens que recebe é merecido e nenhuma das ocasiões de penitência que recebe da bondade divina é imerecida. Daí sua visão diametralmente oposta do Crucificado, daí sua devoção a ele, daí sua exasperação ao ver – e não conseguir entender – o uso desregrado daquela imagem pelo pagão. O fácil exemplo de um é a blasfêmia hedionda de outro, e nada há que os possa reunir, que possa permitir a um ver como sua a visão do outro.

E é por isto que permanece a Cruz, enquanto gira o mundo.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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