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O padrão da operação
| Foto: Divulgação

Uma dessas fantásticas jaboticabas que só existem em Pindorama é a “operação padrão”. Trata-se de um método fabuloso de arrancar das autoridades as demandas de alguma categoria de funcionários públicos sem se expor aos perigos inerentes numa greve. É coisa simples, extremamente simples. Consiste em – pasmem, senhores – seguir a lei. Em outras palavras, cruzar os tês e botar pingos nos is, sem jeitinhos. Como por estas bandas a lei é no mais das vezes coisa para inglês ver, segui-la à risca como se fôssemos alemães, suíços ou algum outro tipo de selvagem das frias terras do Norte paralisa tudo. Nada funciona, nada é feito, a produção de papelada vai a zero. Ao contrário da greve, com seus piquetes e gritarias, contudo, por estarem os barnabés seguindo a lei à risca ninguém ali pode ser punido.

Na prática, a existência da operação padrão é prova cabal e definitiva de que a fina camada de modernidade permanentemente sufocando o país, a crosta levíssima de Direito de nosso Estado, é uma fantasia não muito diversa da que faz um ator de teatro infantil tornar-se magicamente o Homem-Aranha aos olhos das crianças. E só delas. Afinal, a famosa suspensão da descrença, indispensável para que mergulhemos numa obra de ficção, depende muito mais do apreciador que do espetáculo. Quem quer muito ver de perto o amado Homem-Aranha consegue acreditar que o famélico intérprete que tenta juntar moedinhas suficientes para pagar os boletos passando vergonha naquele palquinho deprimente seja o próprio. Já os sofridos pais dos pimpolhos não conseguem efetuar tal mágica nem com reza braba, mormente por terem tido de pagar para sofrer ali.

As leis tupiniquins são feitas por razões díspares, mas o bem comum dificilmente está entre elas. Na Inglaterra, país muito mais moderno que o nosso, Churchill disse que “leis e salsichas, melhor não saber como são feitas”. Aqui a coisa vai bem mais longe, e nem o processo de produção nem o resultado são capazes de agradar a quem não seja diretamente interessado, no pior sentido. Dentre os vários códigos legais que garantem que o Brasil só cresça à noite, um dos mais voltados para interesses particulares escusos e semiescusos é a legislação de trânsito. Quem não lembra do famigerado “kit de primeiros socorros”, que só socorreu o bolso de quem o fabricava? Fora os donos de autoescolas e os fabricantes do equipamento em questão, será que alguém apreciou a obrigatoriedade de passar horas pagas a preço de ouro jogando um videogame vagabundo para conseguir o inútil amuleto conhecido como CNH?

As leis tupiniquins são feitas por razões díspares, mas o bem comum dificilmente está entre elas

Criar dificuldades para vender facilidades sempre foi a principal razão de ser de cada uma das aparentemente infinitas barbaridades vomitadas na legislação de trânsito. Sejam as compostas por deputados, sejam as famigeradas resoluções do Contran, sejam até as barbaridades com que a ABNT(!) consegue prejudicar a quem quer que se aventure a tentar dirigir legalmente pelas peneiras que fazem as vezes de estradas por este Brasilzão fora, só o que se faz é dificultar mais e mais uma gincana que só interessa a despachantes e corruptos em geral.

Quando a aplicação da imbecilidade legislativa cai nas mãos de gente honesta, então, a coisa fica infinitamente pior. Aquelas dificuldades todas, lembro, estão ali para que as facilidades possam ser vendidas. Se o sujeito encarregado de fazer valer a lei não tiver interesse em vender facilidades, não há escapatória. É um pouco na linha do que o Theodore Dalrymple descreveu quando explicou preferir a burocracia corrupta da Itália, onde se tinha sempre como dar um jeitinho molhando a mão de um barnabé, à fria e impessoal burocracia inglesa, em que nada se podia fazer se não mascar mais um antiácido. A diferença é maior, contudo, por a legislação brasileira ser infinitamente mais torpe que a inglesa. Ao contrário desta, a nossa é criada apenas para dificultar a vida de quem não tem costas quentes, sem qualquer interesse pelo bem comum. Mais ainda: como a maior parte das leis brasileiras simplesmente “não cola”, seus autores não se incomodam com coisas básicas como garantir que uma não contradiga outra, ou que haja algum meio de chegar honestamente ao fim de alguma gincana legal criada para engordar políticos e amigos de políticos.

Tive por estes dias um perfeito exemplo do perigo que é o padrão da operação parecer uma operação-padrão. Para minha alegria, uma amada e idosa tia minha veio passar o Natal conosco. Não digo que tenhamos matado completamente as muitas saudades, mas pudemos conversar bastante. Ela conheceu minha netinha e alguns amigos queridos, e para mim a virada de ano voou como sói ser o caso quando se está feliz. Ao cabo da temporada, vindo do Rio de Janeiro, seu filho veio buscá-la de carro. Feitas as chorosas despedidas, acomodados ela e seu cachorrinho também idoso no banco traseiro do carro lotado, puseram-se eles a caminho de casa. Sendo a placa do carro do Rio – Estado falido cuja anomia é por todos sabida –, os guardinhas que faziam uma blitz à beira da estrada, provavelmente aproveitando o primeiro dia sem chuva em semanas para cumprir a cota de multas, não titubearam em mandá-los parar. E aí começou a barbaridade legal. Tão legal quanto desumana, tão desumana quanto legal.

Vejam bem os senhores que a polícia daqui é honesta. Oferecer dinheiro para um guarda, por estas bandas, é passagem de ida para a delegacia e de lá para a cadeia. Mais ainda: as viaturas policiais são providas de um sistema informático sofisticadíssimo, sendo possível aos guardas ter acesso a bancos de dados de todo tipo dali mesmo, na beira da estrada. O tal sistema, para piorar a situação, é por assim dizer de mão dupla: se o guarda, por exemplo, pesquisa a identidade de um sujeito que consta no sistema como procurado e não conduz o sujeito à delegacia, ai do guarda. O mesmo vale para a documentação de automóveis: se o carro não está com a papelada em dia e uma lei idiota manda que seja apreendido, o guarda não tem opção a não ser apreendê-lo. Mesmo que esteja chovendo. Mesmo que se esteja no meio do nada. Mesmo que o carro conduza uma senhora de idade com dificuldades de locomoção e seu poodle de 16 anos de idade. Mesmo que o carro seja de um estado cujo Detran é uma piada macabra.

Quando se compra um carro, pagando mais de 50% do preço em impostos, continua a obrigação tão legal quanto imoral de pagar anualmente resgate ao Estado. É como se todo ano os burocratas nos roubassem as rodas e tivéssemos de comprá-las de volta

E era este o caso. Meu primo havia pago o resgate do carro – pois quando se compra um carro, pagando mais de 50% do preço em impostos, continua a obrigação tão legal quanto imoral de pagar anualmente resgate ao Estado. É como se todo ano os burocratas nos roubassem as rodas e tivéssemos de comprá-las de volta. Enchemos o tanque pagando também uma fortuna em impostos sobre o combustível. Tudo para engordar políticos, sem que tantos atentados ao fundamental direito de propriedade nos tenham qualquer serventia. O resgate havia sido pago, mas o Detran fluminense não se dá mais ao trabalho de emitir o famoso papelzinho verde, amuleto outrora indispensável para espantar guardinhas e demais assombrações que nos dificultam a vida. Não sendo mais obrigatória a tal vistoria (outro magnífico esquema para engordar políticos e cupinchas deles), presumiu ele que o carro estivesse com tudo nos conformes.

Não contava ele com a astúcia da maligna burocracia de trânsito: mal sabia ele, mas havia uma etapa secreta na gincana e a tal documentação, no fim das contas, não estava nos trinques. O guardinha daqui consultou o sistema informático na viatura, que prestimosamente o alertou de que a papelada do carro deixava a desejar e, passando à ameaça, o orientou a mandar rebocar o carro para não ser punido. Em algum lugar naquelas nuvens de bits e bytes flutuantes estava indelevelmente gravada a consulta feita pelo guarda e pendurada a espada de Dâmocles sobre sua cabeça.

Repito: beira de estrada. Uma senhora de cerca de 80 anos de idade, com sérios problemas de locomoção. Um cachorrinho cego e quase incapaz de andar. Uma montoeira de bagagens. O tempo mais chuvoso da história registrada por aqui. Um sistema desumano e inflexível, a serviço de uma burocracia imbecil dedicada a aplicar leis francamente criminosas.

E chega o reboque, e um sujeito todo sujo de graxa, sem dizer “bom-dia”, aboleta-se no banco do motorista e finge não perceber o desespero da senhora no banco de trás, que não tinha como entender o que estava acontecendo. Sobem o carro para o reboque, com ela dentro, o cãozinho assustado latindo para o vazio. Meu primo, desarvorado, do lado de fora, acabou conseguindo arrancar do guardinha uma gentileza que – não duvido – pode custar-lhe caro se chegar aos ouvidos de seus superiores, tão inflexíveis quanto o satânico sistema informático ou a mefistofélica legislação. Desceu-se do reboque o carro, com seus idosos ocupantes humana e canina e fartas bagagens, e um assistente do guincheiro acompanhou de moto meu primo até minha casa. Aqui ele rapidamente esvaziou o carro de sua carga amada e preciosa, mas não tão preciosa aos olhos da criminosa lei quanto as exigências burocráticas, os papeluchos, os carimbos, o que for. Acompanhado pelo meu filho em outro carro, para que tivesse como voltar aqui, ele mesmo levou o carro ao imenso pátio de veículos apreendidos.

Uma senhora de idade não pode ser deixada à beira da estrada. É imoral e asquerosa a lei que manda apreender seu meio de transporte, cujo dono pagou o resgate exigido pelo Estado, que não oferece perigo algum, que não carrega contrabando. No Brasil a lei é o crime, e o crime é a lei

Lá ele finalmente pôde descobrir qual era o problema, o que fazia com que mesmo tendo sido pago o resgate o carro não estivesse livre: tratava-se, vejam só que curioso os senhores, de uma multa não paga. Multa no exuberante valor de R$ 80, e que não duvido jamais tenha sido comunicada ao multado. Ela, sozinha, tinha o nefando poder de fazer com que o carro não estivesse com a papelada em dia. Como desgraça pouca é bobagem, era sábado. Mesmo correndo ao banco e pagando a multa naquele instante, só segunda-feira se poderia ter alguma esperança de que o Detran fluminense tomasse conhecimento do feito. E, claro, o caixa eletrônico também resolveu não colaborar...

Mas não interessam as etapas ulteriores da gincana burocrática. O que interessa aqui, o que deveria ter interessado então, e o que em qualquer sociedade minimamente decente seria o ponto crucial da questão, é a humanidade básica e elementar que faz com que se deva reconhecer que uma senhora de idade não pode ser deixada à beira da estrada. Que é imoral e asquerosa a lei que manda apreender seu meio de transporte, um carro que não foi roubado (se não pelo Estado), cujo dono pagou o resgate exigido pelo Estado, que não oferece perigo algum por estar em boas condições de manutenção, que não carrega contrabando de qualquer espécie. Costumo dizer que no Brasil a lei é o crime, e o crime é a lei. Eis mais um caso em que dificilmente isto poderia ser mais claro. Teria sido infinitamente melhor se fosse outra polícia a pará-los, a polícia corrupta e venal de algum outro lugar, que se satisfaria com cinquentinha na mão. Teria sido igualmente melhor se o simples fato de ter consultado o sistema e recebido dele a resposta de que o documento do carro não estava em dia não impedisse o guarda de sopesar justiça contra legislação, humanidade contra arbitrariedade legal, e simplesmente despedi-los desejando-lhes boa viagem e recomendando ao meu primo que tentasse o quanto antes resolver o problema burocrático.

Estamos num país em que a lei manda deixar senhoras de 80 anos a pé na beira da estrada com seu cachorrinho velho e cego, porque mais vale a burocracia que a razão, que a decência, que a mais básica humanidade

Estamos num país em que caravanas de criminosos armados até os dentes circulam pelas capitais sem que ninguém os incomode. Em que parlamentares são presos por delitos de opinião, em que quem furta uma coxinha de galinha vai em cana, mas quem mata pai e mãe tem saidinha do Dia dos Pais. Num país em que a ilusão de legalidade, a ilusão de Estado de Direito, de modernidade e do que se quiser não resiste ao mais perfunctório exame. Num país em que a operação-padrão é uma ameaça real.

Mas isto ainda não é nada. Estamos num país em que a lei manda deixar senhoras de 80 anos a pé na beira da estrada com seu cachorrinho velho e cego, porque mais vale a burocracia que a razão, que a decência, que a mais básica humanidade. Poucas coisas aquém da escravização do semelhante conseguiriam ser mais vergonhosas.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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