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Foto: Mazur/catholicnews.org.uk
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Semana passada houve uma grande grita nos meios de comunicação, afirmando, em tom de escândalo, que o papa Francisco teria “mudado a doutrina da Igreja” no tocante à pena de morte. Como sempre, o que houve foi uma mistura de desconhecimento completo do que seja a Igreja, um mal de que parecem padecer até mesmo os repórteres especializados em religião de grande parte dos meios de comunicação modernos, com a vontade deles de ouvir algo agradável aos seus ouvidos.

Só para começar, o papa não “mudou a doutrina da Igreja”. Aliás, ele não só não pode, como não consegue mudar a doutrina da Igreja. Esta é uma das garantias dadas a ela por seu Fundador. Qualquer declaração doutrinária teria necessariamente de ser feita de modo específico, dirigindo-se a todos os fiéis e meramente explicitando (não “mudando”) um determinado ponto de doutrina. Há pontos de doutrina que não foram definidos. É, por exemplo, perfeitamente possível a um católico acreditar que a Virgem Maria morreu (e ressuscitou, e foi assunta aos Céus) e a outro acreditar que sua Assunção ocorreu sem que ela tivesse tido de passar pela morte.

Mas a doutrina se desenvolve, ou seja, se aprofunda. Descobrem-se corolários lógicos de pontos de doutrina anteriormente explicitados, e estes corolários, por sua vez, podem ser explicitados e definidos pelo Magistério (a Igreja docente: o papa e todos os bispos em união com ele). Além disso, a Igreja tem de ensinar, pastoralmente, como lidar com a situação em que vivem seus fiéis. As questões que atormentam a sociedade do século 21 são forçosamente diferentes das que causavam noites insones aos teólogos morais do século 16. A doutrina, contudo, jamais muda, jamais mudou e jamais mudará. Uma de suas definições, aliás, é “aquilo que sempre foi crido por todos [os católicos] em toda parte”.

No caso em pauta, o que aconteceu foi uma mudança num parágrafo do Catecismo de São João Paulo II, editado no fim do século passado. A mudança simplesmente torna mais claro o que já estava escrito ali: que hoje (no fim do século passado, ou agora; nisso a internet e os freios ABS não têm tanta importância) existem meios para defender a sociedade de criminosos hediondos sem precisar submetê-los à pena de morte. Ora, a pena de morte sempre foi aceita pela Igreja apenas como meio de defesa da sociedade.

A situação é exatamente a mesma de um caso de defesa pessoal. Se um assassino avança para matar-me, eu tenho o direito de me defender, ainda que meu ato de defesa provoque a morte de meu atacante. Do mesmo modo, se um assassino em série ou outro criminoso hediondo avança contra a sociedade, ela tem o direito de defender-se. Se, contudo, eu sou um boxeador profissional e o assassino em questão é um sujeito magrinho armado com um pedaço de corda, seria assassinato puro e simples matá-lo. Na situação oposta, com um boxeador furioso avançando contra um sujeito magrinho, este poderia, se não houvesse outra maneira, defender-se de modo que causasse a morte do seu atacante. Esta, contudo, nunca poderia ser buscada como um fim em si; ela apenas pode ser tolerada como consequência indesejada, porém inevitável, do ato de defesa. Em outras palavras, a questão não é quando se pode matar alguém, sim em que circunstâncias se é forçado a fazê-lo.

E a sociedade civil hoje em dia, via de regra, é forte o suficiente para eliminar o perigo de qualquer criminoso. O caso que temos, no Brasil, de facções criminosas dominando as cadeias e comandando de dentro delas os seus malefícios, não só é atípico como é devido mais à incapacidade gerencial dos governantes que a qualquer outra coisa. Meios não faltam para isolar esses criminosos, e o fato de governadores e presidentes deixarem de investir em cadeias apropriadas não pode ser causa de um enfraquecimento da lei moral.

A pena de morte, assim, seria uma defesa da sociedade quando esta se visse seriamente incapaz de garantir de outra maneira (com boas cadeias, por exemplo) o fim das ações criminosas de alguns de seus membros. Mas mesmo estes maus membros da sociedade partilham com os bons uma mesma dignidade humana. Sua vida tem valor, mesmo que eles mesmos não o reconheçam, mesmo que eles mesmos se entreguem a uma vida de enfrentamento entre gangues que faz com que na cadeia estejam mais seguros que do lado de fora.

Os católicos acreditamos que o próprio Deus, Criador de todas as coisas, fez-Se homem, e homem verdadeiro. Ao fazê-lo, Ele elevou a dignidade da própria natureza humana que partilhamos todos, desde o menor dos embriões ao maior dos sábios e santos, passando por todos os bandidos, policiais, políticos honestos e corruptos, pais e mães de família etc. Todo ser humano tem esta mesma dignidade, à qual podem se somar outras, mas que jamais desaparece. Isto faz com que toda perda de vida humana, da concepção à morte natural, seja uma tragédia.

Esta tragédia foi muitas vezes necessária, e o é ainda. Que o digam as moças que conseguiram, graças a uma arma de fogo, livrar-se de um perigoso atacante. Que o digam os soldados em uma guerra justa – que tem basicamente os mesmos critérios da defesa pessoal, inclusive não usar de meios que excedam o estritamente necessário para fazer cessar a violência injusta que ela combate pela violência justa. Juridicamente, contudo, a situação de hoje é outra. Quinhentos anos atrás a Igreja estava à frente de todas as instituições judiciais ao colocar sérios limites, na Inquisição, ao derramamento de sangue dos indiciados e culpados. Apenas quando o caso era dado por perdido, depois de, por vezes, anos de debates entre os inquisidores e o acusado, este era entregue ao governo secular, que muitas vezes o submetia à pena de morte por não se ver em condições de impedir que ele continuasse seus malefícios.

Do mesmo modo, ao perceber que hoje há condições de impedir a continuidade das ações criminosas, a Igreja afirma, em sua sabedoria, que a pena de morte pode, e portanto deve, ser evitada. No confronto entre a dignidade humana e os meios de garantir a segurança da sociedade, hoje ganham ambos. É isso que o papa disse.

Vale, ainda, notar que se trata de uma emenda ao texto do Catecismo mais recente, que é basicamente um documento dirigido aos bispos para que a partir dele eles orientem o ensino e a ação pastoral em suas dioceses. Evidentemente, não se trata de um documento interdito aos fiéis; muito pelo contrário. Todo católico que tenha condições intelectuais suficientes deve estudá-lo. Não se trata, contudo, de um documento de definição doutrinal, sim de um documento pastoral, de enorme valor e que deve ser seguido.

Não sabemos, contudo, como estarão nossas sociedades daqui a 100 anos. Podem ser perdidos os meios de que hoje dispomos, e a pena de morte, infelizmente, tornar-se novamente aceitável como único meio de impedir os malefícios de alguns criminosos. Hoje, contudo, pastoralmente vale o escrito neste Catecismo.

Como no Brasil não temos pena de morte legal, este documento não nos leva a mudanças pastorais práticas, apenas nos insta a trabalhar com mais afinco pela reforma das penitenciárias, para que escândalos públicos como a existência do PCC e do CV se tornem o quanto antes coisa do passado. A culpa de termos o crime comandado de dentro das penitenciárias não é apenas dos criminosos; quem possibilita que eles o façam é na verdade tão ou mais culpado que eles, e deveria fazer-lhes companhia em penitenciárias em que os presos fiquem isolados do mundo exterior e não possam fazer mais mal. Sem que se precise matar ninguém.

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