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O candidato a deputado federal Guilherme Boulos (Psol) foi o mais votado no estado de São Paulo.
O candidato a deputado federal Guilherme Boulos (Psol) foi o mais votado no estado de São Paulo.| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Uma das coisas mais chocantes para os pobres estrangeiros que tentam entender este país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, é a importantíssima instituição do “para inglês ver”. O nome, dizem, vem de um acordo feito com a Inglaterra antiescravagista, em que a Marinha brasileira se comprometeria a colaborar com a inglesa na captura de navios negreiros vindos da África com os porões abarrotados de inocentes escravizados. Enquanto os ingleses levavam a sério a sua parte do acordo, a Marinha brasileira só faltava convidar os infames capitães das nefandas naus para aquele cafezinho. Em outras palavras, o acordo era única e exclusivamente para inglês ver.

Até hoje, o que mais se vê por aí é coisa que existe única e exclusivamente na fantasia, mas a que se dá tratamento de realidade para todos os fins. Um exemplo claríssimo, brado retumbante dessa instituição pela qual a ficção toma o lugar da realidade, nos foi dado, como a cada eleição proporcional, pela piada macabra do “voto de legenda”. É até curioso, do ponto de vista etimológico, que “legenda” e “lenda” sejam duas formas da mesma palavra, que originalmente significava “coisas que são lidas” (em oposição a coisas que são vividas). Reza a lenda que existiriam não apenas sacis, curupiras e mulas-sem-cabeça, mas também partidos no Brasil. Em outras palavras, que a população brasileira estaria mais ou menos dividida (ou “partida”) em grupos aderentes a visões ideológicas díspares, porém compatíveis com um regime democrático, portanto em última instância compatíveis entre si. Vai ainda mais longe a lendária composição da nossa coisa política: essas lendas, digo, legendas seriam importantíssimas para o eleitor, muito mais importantes que os próprios candidatos. Votaríamos no partido tal, representado por este ou aquele candidato.

Como felizmente isso não tem absolutamente nada a ver com a realidade, como de costume foi eleita uma representação parlamentar da lenda, não da realidade. Dos 513 deputados eleitos, meros 26 – duas dúzias mais uma dupla – tiveram votação acima do quociente eleitoral, a divisão dos votos válidos pelo número de vagas do estado. Todos os demais entraram, por assim dizer, puxados por estes, ganhando cadeiras pela mera mágica de estarem no mesmo partido. Parece que a coisa não é mais tão escrachada como quando o finado Dr. Enéas conseguiu botar na Câmara um punhado de desconhecidos absolutos, entre os quais uma moça que atendia por “Senhorita Suely”, com a varinha de condão do voto de legenda. Da lenda de que brasileiro acredita em partido, parte-se partidariamente, e escolhe candidato ideologicamente.

Reza a lenda que existiriam não apenas sacis, curupiras e mulas-sem-cabeça, mas também partidos no Brasil

Ora, por estas bandas até os políticos mais ideológicos são personalidades, se não ideologicamente personalistas. Os partidos ideológicos, sabemos todos, são minoria absoluta. Estão todos na extrema-esquerda, e nenhum deles é compatível com uma visão democrática da administração da coisa pública. Mesmo assim, salta aos olhos que o grosso dos candidatos de tais legendas que conseguiu ganhar na marra, sem “ajudinhas” lendárias, é gente que tem nome próprio, fama, fã-clube. Em outras palavras, gente que foi eleita por ser conhecida pessoalmente dos eleitores, gente em quem o próprio eleitorado confia, não – como na lenda – meros “representantes” deste ou daquele partido. Ao contrário, até, diria eu: os partidos (de esquerda ou de aluguel – é esta a opção, fazer o quê?) é que acabam sendo reflexão das personalidades que os habitam. O PSol é mais partido do Boulos que o Boulos é representante do PSol, pelo menos para o eleitorado dele. Os demais psolistas que ele tenha puxado com certeza receberam seus votos de gente para quem não faria muita diferença se estivessem no PSol ou no PT, ou até em partidos menos ideológicos, mas que agregam gente de esquerda, como o PDT. Foram votos pessoais, ainda que dados por eleitores ideologicamente de esquerda. Para mim, por exemplo, que não presto muita atenção nessas coisas, foi uma surpresa descobrir que a brilhante e belíssima Tabata Amaral, com quem raramente concordo no que quer que seja, mas que realmente admiro pela trajetória, foi puxadora de votos do PSB, tendo deixado o PDT ano passado.

Do outro lado da divisão ideológica, o descompasso entre a realidade e a lenda é tão vasto que o atual “partido do Bolsonaro”, o PL, apoiou na eleição presidencial anterior o atual candidato a vice do Lula. Nas duas anteriores, apoiou o poste do Lula. Em outras palavras, é um veículo vazio para candidaturas, que pelas exigências legais de adequação a lendas e fábulas tem importância de mercado e consegue quem o alugue ou compre. Dada a sofreguidão do eleitorado por candidatos alinhados com o bolsopresidente, um número de candidato começando com o mesmo calibre 22 virou grife de bolsonarista. Não, claro, alinhamento ideológico, mesmo porque, mais claro ainda, a ideologia do Grande Eleitor é tão confusa quanto sua bolsocabeça. Seria uma tarefa inglória tentar alinhavar nas claras linhas de uma ideologia costuradinha como as fantasias da extrema-esquerda o que passa por “valores” na visão de política do Bolsonaro. Misturam-se ali coisas extremamente díspares, como uma suposta valorização da família enquanto se está na terceira companheira e se dá aos patrões o direito de exigir que os empregados trabalhem aos domingos e só vejam os filhos dormindo, e por aí vai. Nada junta com nada; não há como acusar o bolsopresidente de pertencimento ou coerência ideológica. O único ponto em que seu pensamento cruza com alguma ideologia é em seu salutar anticomunismo. Todavia, o fato de ele ser contra uma determinada ideologia – a comunista, seja ela em forma pura e dura, como no PCO, ou em suas versões mais atenuadas – evidentemente não o torna partidário de alguma outra. Muito pelo contrário, aliás: não seria um grande salto se seu anticomunismo se estendesse a um anti-ideologismo mais generalizado.

Nenhuma ideologia realmente vinga no Brasil, e é por isso que a lenda dos partidos sempre foi e sempre será para inglês ver. Ora, pitombas, os eleitores dos partidos de esquerda, em sua maioria gente de classe média urbana, dificilmente deixam passar a oportunidade de soltar um “você sabe com quem está falando?” para intimidar um guardinha, quando têm ocasião. Um comunista de quatro costados muito querido meu, ideológico ao ponto de jamais ter aceitado trabalhar na iniciativa privada por vê-la como inimiga, contou-me indignado que, tendo sido posto num cargo de terceiro escalão no primeiro mandato do Lula, recebeu uma “carteirinha de autoridade”, que servia única e exclusivamente para dar carteiradas e intimidar guardinhas e leões-de-chácara de boates. O próprio PT, partido em tese ideológico até a medula, que o felizmente falecido Brizola apelidara de “UDN de macacão”, distribuiu carteirinhas-de-dar-carteirada aos que colocou em postos importantes da máquina pública. Se isso não é a negação do igualitarismo ideológico que supostamente seria o Leitmotif do partido, não sei o que poderia sê-lo. Bom, talvez um presidente que ganha tríplex, sítio, essas coisas, da iniciativa privada. Ou cuja amante é flagrada com uma mala cheia de euros na alfândega da Terrinha...

Coisa curiosa, aliás, é que – provando que a vida imita a arte – o infelizmente finado Stanislaw Ponte Preta escreveu uma vez uma crônica deliciosa em que propunha que fossem emitidas tais “carteirinhas de autoridade”, para facilitar a quem tem as costas quentes humilhar PMs. Foi mais além, até, ao sugerir que elas tivessem números, tanto mais baixos quanto mais importante fosse a autoridade do carteirante em questão, para evitar constrangedoras situações em que um pobre servo do Estado se vê diante de dois carteirudos e tem de tentar descobrir, sem termômetro, qual carteirador tem as costas mais quentes. Pois no Brasil, só no Brasil, exclusivamente no Brasil, tal negação aberta e explícita do igualitarismo esquerdista é tornada realidade por um partido ideológico de extrema-esquerda, em tese extremamente igualitarista.

O pior desse tipo de palhaçada para inglês ver, todavia, é que ela nega frontalmente a vontade do povo, que nessa outra lenda – a democracia – deveria ser o cerne de tudo. Afinal, o eleitor brasileiro vota em pessoas, e via de regra nem sabe a que partido pertencem. Se o sujeito tem o azar de pertencer a um partido em que não há “puxador de votos” bom – ou seja, uma grande personalidade que ganha votos pessoais em quantidade e assim “elege” seus coleguinhas de bandeira –, ele pode ser tremendamente bem votado em relação a gente que acaba eleita, sem contudo jamais ter sequer a chance de ter o gostinho de se saber eleito. Lembro de um vereador numa cidade em que morei, que se vendo entre a cruz e a caldeirinha, com o objetivo único e declarado de evitar indispor-se com qualquer dos dois candidatos a prefeito que se digladiavam, xingando mãe e botando apelidinho, decidiu concorrer por um partidinho irrelevante. Foi o vereador mais bem votado da cidade, mas não entrou.

Uma amiga, que é também amiga do Marcel van Hattem, ficou preocupadíssima ao vê-lo concorrendo pelo Novo. Temia que o partido não tivesse votos suficientes no estado dele, colocando-o na mesma situação do pobre vereador de que falei. Felizmente, tanto para o Van Hattem quanto para os que deram a sorte de pertencer ao mesmo partido, ele foi tão bem votado que virou puxador de votos para a legenda.

É maravilhoso que nossa população não esteja partida em partidos, todos sonhando com utopias e nenhum sabendo lidar com a realidade. Não; ao contrário, temos gente que vota em gente, gente que confia em – ou desconfia de – outras gentes

Mas o fato é que acaba sendo eleito quem teve pouco voto, mas teve a sorte de inscrever-se numa legenda com bons puxadores, enquanto fica a ver navios a vontade popular ao ser negada a eleição a quem tenha tido boa votação, mas tenha tido o azar de só achar vaga em partido sem bons puxadores. É uma vergonha, uma negação aberta e descarada da vontade popular, um atentado à democracia. Não há representatividade se o voto conta menos que o que na prática é mera formalidade burocrática. De 500 e poucos deputados, 20 e tantos terão sido eleitos incontestavelmente. Todo o resto terá legitimidade no mínimo dúbia, se o critério for a vontade do povo e não as peripécias legais que só servem para inglês ver. Essa palhaçada só serve àquilo que é a exceção, não a regra: os partidos de extrema-esquerda. Estes, e só estes, fazem uma pré-seleção ideológica dos candidatos. É bem verdade que podem se enganar barbaramente, como foi o caso do PSol quando abrigou brevemente em suas ideológicas fileiras o Cabo Daciolo. Contudo, de modo geral, para eles e só para eles é lucro que a votação pessoal e (na cabeça do eleitor) intransferível de seu puxador de votos faça com que os votos dados a azarados em termos de escolha de partido sejam na prática roubados deles. O Boulos ou a Gleisi botam na Câmara outros quadros ideológicos com seus votos pessoais. Já os puxadores de votos de todos os partidos não ideológicos, ou seja, de todas as legendas fora da extrema-esquerda, botam na Câmara meros sortudos. Gente que ganha vaga de deputado como quem ganha na loteria. Gente que provavelmente vai discordar em tudo ou quase tudo do puxador que lá o colocou.

E tudo isso para manter a ilusão de que vivemos num país moderno, num país robotizado cuja população não consegue ver o mundo sem antolhos projetados em laboratório por algum falso gênio. É uma grande graça – um “livramento”, diriam os pentecas – que não seja o caso. É maravilhoso que não tenhamos em nosso meio tais barbaridades, que nossa população não esteja partida em partidos, todos sonhando com utopias e nenhum sabendo lidar com a realidade. Não; ao contrário, temos gente que vota em gente, gente que confia em – ou desconfia de – outras gentes, e com isso poderíamos ter uma política verdadeiramente representativa e verdadeiramente democrática. Poderíamos ter discussões reais e não ideológicas – ou antes reais por não ideológicas – da coisa pública. Poderíamos encontrar caminhos nossos, soluções reais para problemas reais.

Em vez disso, preferimos a fantasia. A ilusão. A lenda. Tudo para inglês ver, como se olho de inglês engordasse gado. É uma tristeza, e uma vergonha. Como praticamente tudo na política brasileira, aliás.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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