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Ricardo Pozzo
Ricardo Pozzo| Foto:

A vida secreta dos homens-árvores

Chega um momento na vida de um homem solitário, prestes a se tornar velho de espírito, em que o seu cansaço é originário de um lugar onde não é possível alcançar: um cansaço da vida, de seus projetos, de suas mulheres, escolhas, compromissos, excessos – e a vontade primordial é de se calar e não ter ninguém por perto, ser póstumo e anônimo em seu sofrimento inventado. [Sua trilha interna evoca Antônio Maria.]

Dia desses um amigo presenciou uma cena que considerei comovente. No meio da rua, uma velhinha caiu ao medir inadequadamente um degrau da calçada. Em menos de três segundos, diversos transeuntes se prontificaram a ajudá-la. Ela foi levantada, espantada com a publicidade instantânea de sua queda e acometida por uma turba perguntadora sobre a sua vida e saúde, um excesso quase viril de preocupação. Sem saber como reagir à comoção geral – o constrangimento não cabia em seu rosto –, ela disse se sentir inundada pelo excesso de bons sentimentos alheios, só queria saber de seguir em frente e esquecer o episódio.

Não sei quem disse que escrever é libertador. Mentiu-me. Escrevo como quem cava buraco no chão. Tem dia que a terra está molhada e a mão parece fluir – não sou eu, é a água –, mas, de modo geral, meu coração é enxada e não aceita facilmente o contato com a folha branca – se eu fosse romancista, se eu fosse romancista…

O que estou querendo te dizer, você que está aí me acompanhando – hoje não estou num dia muito luminoso, sabe? – em sua busca igualmente particular e confusa, é que sinto fortemente não ser matéria digna de ser registrada (e me registrar). Faço-o por a) Desfaçatez; b) Ausência de talento literário bruto; e c) Melancolia, pois nem tristeza e amor sei sentir direito.

Ricardo Pozzo

Ricardo Pozzo

Agora, por exemplo, é 5h23. Às 8h30 darei aula. Provavelmente reclamarei com o meu amigo durante o intervalo. Ando cansado, muito cansado. Você deve saber do que estou falando, mal conseguir dormir de tão cansado que o seu corpo está, refletindo a temporada – sou amplamente favorável à redução de jogos. Às 11h30 irei pegar o meu carro e encostar-me-ei embaixo de uma árvore. Vou ouvir um pouco do programa esportivo da rádio até cochilar e então será 13h30, quando começarei o segundo turno de minha rotina.

Terminei de ler a pouco A vida privada das árvores, deste narrador chileno clássico, na tradição dos narradores orais do início dos tempos, que é Alejandro Zambra. Veja só:

Semana passada, Julián fez trinta anos. A festa foi um pouco estranha, marcada pelo desânimo do aniversariante. Assim como algumas mulheres diminuem a idade, ele às vezes precisa acrescentar alguns anos à sua, olhar para o passado com um volúvel travo de amargura. Ultimamente deu de cismar que devia ter sido dentista ou geólogo ou meteorologista. De repente, acha estranho seu ofício: professor. Mas sua verdadeira profissão, pensa agora, é ter caspa. Imagina-se dando esta resposta:

Qual é a sua profissão?

Ter caspa.

Numa destas palestras me perguntaram qual era a função da literatura – me senti o relógio parado de O Curioso Caso de Benjamin Button, aliás, comecei a ler Pileques, de F. Scott Fitzgerald, uma colagem etílica editada com galhardia pela Arte & Letra, a editora que ultimamente só faz me emocionar, mais e mais –, e respondi que esta pergunta era tão útil quanto perguntar a um jardineiro o porquê dele cortar galhos que irão crescer indefinidamente, semana após semana.

Meu interlocutor alegou que um jardineiro poda árvores para deixá-las esteticamente bonitas ou para que cresçam de um jeito, quem sabe, mais harmonioso. Bem, você está respondido, meu caro. Estamos aqui para, de alguma forma, lidar com os galhos que não param de crescer, usurpando a beleza que catamos dos espinhos. Uns cavam buracos no chão, outros, como Zambra, domesticam a palavra e fazem de não-histórias seu olimpo, alguns podam árvores, há quem pergunte sobre o sentido da vida, mesmo desconfiando da desimportância geral de tudo, pois logo chega 16h30, o turno encerra e a gente volta a pensar se é isso que quer mesmo da vida.

Suave é a noite.

O dia amanhece sem chuva. Segundo o Simepar, a máxima será de 19° e a mínima de 13° em Curitiba, nublado passando a parcialmente nublado.

 

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