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Ricardo Pozzo
Ricardo Pozzo| Foto:

Sei que em certos dias isto aqui até parece um consultório afetivo sem porta de saída. Desculpe-me – a gasta estratégia de já sair pedindo perdão ao leitor –, o amor é um monotema que muito me interessa, ainda mais ao considerar que, diferentemente dos sofrimentos e angústias do jovem Werther, as suas possibilidades sempre me expandiram – a sorte de ter tido poucos amores ruins.

Então, vamos lá: você conhece o monumental poema Ah, diz-me a verdade acerca do amor, do anglo-americano W.H. Auden? Se sim, ótimo: leia de novo, a vida como um sopro no escuro. Se não, cuidado. É de derrubar.


Há quem diga que o amor é um rapazinho,
            E quem diga que ele é um pássaro;
Há quem diga que faz o mundo girar,
            E quem diga que é um absurdo,
E quando perguntei ao meu vizinho,
            Que tinha ar de quem sabia,
A sua mulher zangou-se mesmo muito,
            E disse que isso não servia para nada.

      Será parecido com uns pijamas,
         Ou com o presunto num hotel de abstinência?
      O seu odor faz lembrar o dos lamas,
         Ou tem um cheiro agradável?
      É áspero ao tacto como uma sebe espinhosa
         Ou é fofo como um edredão de penas?
      É cortante ou muito polido nos seus bordos?
         Ah, diz-me a verdade acerca do amor.

Os nossos livros de história fazem-lhe referências
           Em curtas notas crípticas,
É um assunto de conversa muito vulgar
           Nos transatlânticos;
Descobri que o assunto era mencionado
           Em relatos de suicidas,
E até o vi escrevinhado
           Nas costas dos guias ferroviários.

      Uiva como um cão de Alsácia esfomeado,
         Ou ribomba como uma banda militar?
      Poderá alguém fazer uma imitação perfeita
         Com um serrote ou um Steinway de concerto?
      O seu canto é estrondoso nas festas?
         Ou gosta apenas de música clássica?
      Interrompe-se quando queremos estar sossegados?
         Ah! diz-me a verdade acerca do amor.

Espreitei a casa de verão,
             E não estava lá,
Tentei o Tamisa em Maidenhead
             E o ar tonificante de Brighton,
Não sei o que cantava o melro,
             Ou o que a tulipa dizia;
Mas não estava na capoeira,
             Nem debaixo da cama.

      Fará esgares extraordinários?
         Enjoa sempre num baloiço?
      Passa todo o seu tempo nas corridas?
         Ou a tocar violino em pedaços de cordel?
      Tem ideias próprias sobre o dinheiro?
         Pensa ser o patriotismo suficiente?
     As suas histórias são vulgares mas divertidas?
        Ah, diz-me a verdade acerca do amor.

     Chega sem avisar no instante
        Em que meto o dedo no nariz?
     Virá bater-me à porta de manhã,
        Ou pisar-me os pés no autocarro?
     Virá como uma súbita mudança de tempo?
        O seu acolhimento será rude ou delicado?
     Virá alterar toda a minha vida?
        Ah, diz-me a verdade acerca do amor.

                                                                 Janeiro, 1938

 

Desde o começo do ano, troco cartas com uma amiga e professora de Letras. Ela lança-me perguntas muito pertinentes sobre este poema do também autor do pungente Funeral Blues: Já imaginou se alguém simplesmente chegasse e dissesse mesmo? Toda a verdade, todinha, a verdade completa, absoluta, atemporal sobre o amor? E se nós, um dia, desavisados, abríssemos um livro, uma caixa, e lá estivesse estirada a tal verdade? E se um estranho na rua nos parasse – braço estendido – e simplesmente declamasse, numa língua inaudita qualquer, toda a verdade sobre o amor? E se, de repente, entendêssemos tudo, tudo-tudo, claro como nunca dantes?

Lendo hoje o clássico romântico-trágico de Goethe, penso se nós não superdimensionamos um tema que, por si só, deveria ser analisado no âmbito de nossas relações humanas mais amplas, não apenas o amor unidirecional e a redoma de expectativas, buscas e ansiedades. Colabora-me para um certo pessimismo ter presenciado hoje um casal brigar na faculdade porque o rapaz não quis acompanhar a moça até a cantina no intervalo.

[Mas não pensem que sou desapegado: prometi ao amor que ando a cultivar e compartilhei a história que não irei, NUNCA, abandoná-la na cantina.]

E ela continua: Ficaríamos impassíveis, ou sucumbiríamos à lucidez insuportável, fulminados, em pó – como os mortais que ousam flagrar os deuses em sua absoluta plenipotência? Estaríamos enfim plenos, satisfeitos, ou em ruínas? Ganharíamos uma espada aurifulgente à mão, ou cravada no estômago? Qual é o exato segundo no tempo, o átimo em que nos apaixonamos por alguém? Em qual de tantas viagens o amor nos pisa o pé no autocarro?  Como aquela pessoa tão outra qualquer, mero borrão de humanidade, se transforma, de repente, na coisa mais precisa (exata  e necessária)? Quando? Qual o bater de pálpebras fatal? Qual a palavra que nos planta, sutil, o velho tremor de estrelas ao peito? Qual a audácia?

Como se vê, as perguntas são melhores do que as proposições de veridicidade. Auden, malandro, lida com o amor com a exímia fanfarronice da criança que quebra uma louça em casa e tenta colar, escondida dos pais – o que não me impede, na solidão noturna de meu céu interior, de te dizer que o amor é rude como acordar para trabalhar cedo e delicado como o verão de seus olhos.

Então, confortavelmente socrático, desligo a luz do quarto para dormir isento na ignorância sobre tudo.

Ricardo Pozzo

Ricardo Pozzo

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