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Ricardo Pozzo
Ricardo Pozzo| Foto:

Antes de mais nada, veja que incrível o título da coletânea de poemas de Paulo Scott, da época em que ele assinava sob o pseudônimo medonho de Elrodris: Histórias curtas para domesticar as paixões dos anjos e atenuar os sofrimentos dos monstros.

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A segurança do Tribunal Regional Eleitoral daqui da cidade sempre me abordava nas sextas-feiras de distribuição de jornal. Queria que deixasse alguns jornais gratuitos para entregar aos cidadãos que ficam até duas horas na fila, esperando, muitas vezes sem fazer nada.

São três meses que incrementei o Tribunal na planilha de entregas. Hoje, quando fui deixar um jornal de política – atrasado… –, observei que na mesinha de entrada agora tem quatro jornais para livre distribuição.

Contei trinta pessoas e treze com algum impresso nas mãos.

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O jardineiro aqui de casa é autossuficiente com o jardim. Quando vê que o mato está começando a tomar conta ele já está roçando, seja o dia que for. Lembro-me que na terça-feira de carnaval, bem cedinho, umas 8h, eu acompanhava o meu amor solar até o carro, e ele já tinha carpido metade do jardim. Eu mal conseguia distingui-lo diante da imponência do sol da manhã e das minhas duas horas de sono.

Hoje o vi na rua e ele perguntou se o cacto da meia-noite estava florescendo bem depois do fim do verão. Acrescentou que, por ele, todas as casas teriam jardins e flores e que gostaria de morrer cuidando de jardim, uma morte súbita, mas não sem propósito.

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A moça de camisa-xadrez que senta quase ao meu lado – gente, como é linda… – pergunta à professora de Literatura se acontece dos escritores mentirem muito. Porque nós acreditamos, ora, disse assim, quase que indignada.

Ah, que vontade de te abraçar, senhorita. [É casada, cronista, é casada…] Uma vez minha sobrinha, quando tinha seis anos, perguntou se eu tinha lido todas as obras da estante da minha sala. Disse que não, no que ela contraperguntou:

– Quando eu souber ler, posso vir aqui escondida da minha mãe e ler pra você?

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Um amigo conta que após o tenebroso inverno do coração que foi a separação de sua noiva, que o traía com o professor da academia, deu a sorte de logo conhecer outra mulher e se apaixonar. Com a voz um tanto embargada, me diz que em certas noites sem dormir se sentia como se desterrado, sem razão de existir:

– Então, me aparece uma mulher desta, incrível, que até me vê jogar futebol… De repente, minha vida recomeça e eu me sinto grande novamente. Como é a vida, não?

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No documentário Eu Maior, a Monja Coen alega que a raiz de nossos problemas é a memória negativa, sempre ativada quando estamos diante de algum quadro mais delicado. Segundo ela, passamos a vida cultivando a lembrança de coisas desagradáveis e procurando sempre outras estações para ser feliz, que não esta, a do presente.

Ela conta uma história belíssima sobre monges. Diz que certo dia um monge viu uma mulher com dificuldades para atravessar um rio e a carregou no colo até o outro lado – os monges são disciplinados para não entrar em contato com o corpo feminino.

Uma hora depois do raro acontecimento, outro monge, visivelmente irritado, esbraveja:

– Você pegou aquela mulher e a carregou até a outra margem!

No que o primeiro monge responde:

– Sim. Eu a levei até a outra margem, mas a deixei lá. Você ainda a carrega consigo.

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Quem eu sou e por que vivo?

São as duas perguntas do milhão deste documentário. Estou a quase trinta minutos pensando nisso e nada encontro de suficiente e acalentador. Mas vou arriscar uma elucubração, quase ingênua: permaneço para tentar trazer alguma harmonia àqueles que vivem ao meu redor, existo para não ser sugado para dentro do fluxo contemporâneo (e ter alguma paz interior neste percurso) e vivo para just love and be loved in return, como naquela canção popular norte-americana, Nature Boy.

Porque, enfim – e aqui não digo somente de amores convencionais e de romantismos clássicos, creio –, o mundo é extenso e arbitrário, somos em bilhões de estrelas e galáxias e ainda temos a fatalidade de nosso corpo perene para nos açoitar, numa via de tempo dura e ferrenha.

Ainda assim, estamos vivos e é o amor que nos possibilita atingir a profundidade de nosso ser e alguma sabedoria para melhor viver em meio a este mundo caótico e, por vezes, muito triste. É o que monges, jardineiros, crianças, seguranças e moças bonitas e curiosas me dizem sobre estar aqui e não apenas somente de passagem neste dia que é somente mais um, mas, como todos sabemos e esquecemos, pode ser o último.

 

Ricardo Pozzo

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