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Ricardo Pozzo
Ricardo Pozzo| Foto:

Balada de um café na Cruz Machado

Um título me persegue desde os 14 anos: A Balada do Café Triste, a famosa coletânea da escritora norte-americana Carson McCullers. Achei que devia te dizer, caso um dia você queira me presentear.

Mas não é disso que quero falar. A perda contínua do próprio nome para a vida pública – embora, no meu caso, a coisa ainda esteja em estágio fetal – leva-me a tergiversar sobre diversas coisas que não tenho o menor predicado para dizer ou lançar luz. Vejamos: qual é o maior poeta curitibano?

Não precisamos de muita ciência para afirmar que poesia não é o GP Brasil de Turfe. Como determinar quando a poesia de um se torna melhor do que a feita por outro? Bem, como sempre é preciso dizer algo, mesmo sabendo que muita gente mais capacitada do que eu pode teorizar amplamente sobre o assunto, por estas paragens o nome que me ocorre é o de Rodrigo Madeira.

Madeira tem um livro incrível chamado Pássaro Ruim. Pessoalmente é um elegante, um terno, apesar de tê-lo visto apenas duas vezes e isso não importar nada. Mas aqui isso importa. Porque sim. A sua poesia parece ser uma extensão de seus modos, de frequência baixa e profunda.

Um de meus orgulhos editoriais foi ter republicado seu monumental A Balada da Cruz Machado numa longínqua edição de junho de 2012 do RelevO – estou inventando a data, não lembro quando foi.

O que quero te dizer é que ele é um poeta muito bom. Somente isso.

[…]

quem dentre vós estiver

sem pecado

que fume a primeira pedra.

sob as marquises da rua

ou em ruelas bem próximas

que por vazias e umbrosas

são melhor acoitamento

e, em especial, no centro

pela praça tiradentes

(desaguadouro e monturo)

de homens sem qualquer futuro

traficantes e usuários

usuários traficantes

consumindo criptonita

qual se todas suas vidas

consistissem num segundo…

uma rua à queima-roupa

curta, brilhante, sem fôlego

de uma miséria ancestral

rua-vício, rua-oxímoro

a cruz machado termina

nos pés de uma catedral.

Ricardo Pozzo

Ricardo Pozzo

Furto cego, faca amolada

Uma de minhas duvidosas virtudes é furtar histórias alheias e torná-las minhas. Não estamos falando de ouvir algo e escrever sobre isso. Nem de roubo, já que a pessoa furtada não tem conhecimento do ato. Furto histórias e me coloco como protagonista delas.

A história do pastor que exorciza um motor na madrugada é a minha preferida. Devo ter ouvido de uma amiga num restaurante em Araucária por volta de 2008. [Aliás, seu cônjuge – que palavra linda! – comete, nas rodas etílicas, uma interpretação épica às avessas de Cio da Terra, de Chico Buarque e Milton Nascimento, a sublime canção dos bagos do trigo. Se soubesse cantar, eu furtaria a interpretação.]

Bem, aconteceu o seguinte, segundo a proprietária: numa certa madrugada insone ela presenciou na tevê, num programa evangélico, o caso de uma mulher que reclamava de sua sorte: ela batia o carro com uma constância indesejável. Era tirar do mecânico e pronto: carro batido. O pastor, comovido, mandou entrar o carro, devidamente empurrado por dois seguranças. Então, ele pediu para abrirem o capô, encostou a sua mão direita no motor e disse:

– Eu sei que você está aí…

A resposta, homérica, vinha das profundezas:

– Estou no motor…

Achei o enredo tão incrível e engenhoso que conto para todo mundo que acabo conhecendo. E vou incorporando detalhes, cintilando passagens, cortando algumas coisas que não me interessaram, ampliando o drama, invento até as condições em que presenciei a história na madrugada.

Não tenho a menor vergonha disso.

É meu o brilho cego de paixão e fé, faca amolada.

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