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Se eu fosse um guarda-roupa – e eu não tenho um guarda-roupa, o antigo apodreceu na umidade da casa de madeira –, diria que tenho duas gavetas com nomes bem definidos. São duas mulheres impossíveis. Ao meu jeito, amo-as de modo incondicional.

A primeira delas conheci nas avenidas literárias da vida – ó, avenida literária… ó, vinhas fatigadas… Conhecemo-nos numa dessas cafeterias hipsters da capital. Ela me comentou de seus desamores, do quanto gosta de Bukowski e das impressões alucinadas que a literatura de F.Scott Fitzgerald havia lhe causado – esse monstro-dândi. Recomendei o testamento-diário Pileques e pensei comigo: “Meu amor, um dia você será minha”. [Já escrevi isso em outra crônica, perdoe-me. Não. Entenda: somos a melhor repetição que conseguimos ser.]

Ontem ela me escreveu: “Você ama mulheres que precisam ser salvas, não?”. Sim. Amo. Contanto que sejam mais fogueira do que escuridão – o amor faz isso, junta palavras pobres e revela que não temos maiores braços para juntá-las melhor. Em outro dia, escreveu-me, às 14h05 de uma tarde chuvosa, que apenas queria um abraço e um beijo – quase me desmontou no trânsito, a minha Zelda: ela que escreve como se a página fosse uma descida assistida ao inferno, o guia sorrindo, se autointitula assim, “você sabe que eu sou a sua Zelda”, e diz abertamente que em algum momento entrará ruidosamente na minha vida para me enlouquecer.

Há duas temporadas estou esperando isso acontecer – em certos dias parece que o seu nome transborda dentro em mim. Mas ela me foge, me foge, me foge, e às vezes reaparece como uma tocata de Bach, linda e assustadora.

Meu segundo grande amor sem geografia tem nome de música-cenário de Dorival Caymmi e se envidraça em cada esquina. Lá se vão quase três anos, aliás, que ano esse 2012. Talvez ela seja a mulher mais incrível e quebrada que eu conheça, dessas que dá vontade de abraçar a cada tristeza – e eu poderia dizer que são tristezas falsas, tristezas de não saber o que é tristeza. Não: essa é uma mulher especialmente triste. É quase uma vocação.

E como escreve essa mulher. Parece um encontro do diário da Frida Kahlo com as pinturas marítimas de Turner. Ela brilha e explode. Agora há pouco eu disse que, antes de dormir, lembrei-a. Em O Amor nos Tempos do Cólera, Florentino Ariza passa 50 anos escrevendo e desejando a mesma mulher, a mesma Firmina. Até que no final da vida o amor acontece – e mal sei te dizer como isso é comovente no livro. E eu digo que isso irá acontecer com a gente, minha querida, irá acontecer, e quando acontecer surgirá um novo paralelo nas histórias de amor do mundo, não tenho pressa – mentira, tenho sim.

Peço que ela também minta e diga sim, iremos acontecer, na velhice, na decrepitude, no momento derradeiro. Ela me responde: “Serei sua, nem que seja apenas no sonho dessa noite. Boa noite.” Seca, impávida, abrangente.

Então, fecho os olhos, com meus dois amores inacontecidos, uma de cada lado. Elas dormem comigo, no silêncio aparente dos sonhos intranquilos, e eu tento protegê-las das profundezas da madrugada, alcácer sempre perigoso. Falho miseravelmente.*

 

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*Ando cansado dessa discussão dos últimos dias sobre escrever somente por vingança. Hoje apenas escrevo para amar as mulheres que não amei, melhor amar aquelas que hoje amo e recordar-enquadrar-moldurar aquelas que bem amei. O restante do percurso agora me desinteressa enquanto escrevinhador. Amanhã já não sei.

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