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Iara Amaral
Iara Amaral| Foto:

Acordei sobressaltado e era quase dia: no sonho eu pedia a um amigo que procurasse o primeiro obituário que escrevi na vida, publicado lá em Campina Grande do Sul. Meu amigo folheava o arquivo do jornal na mesinha de centro, enquanto, ao meu lado, uma senhora sem rosto olhava-me fixamente, por debaixo de meu queixo.

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Aos poucos o sóno foi reagrupando-me à escuridão – ando cansado desta primeira semana de aula, nunca tive problema para dormir, esta semana sim – e desfiz-me da matéria de mim, desalmejando as lembranças.

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Reacordo duas horas depois com a minha irmã mais velha batendo na janela, perguntando se posso levá-la ao cemitério do Umbará. Está chorando. Pergunto o que ela precisa fazer no cemitério do Umbará em plena quinta-feira, estou um pouco surdo do ouvido esquerdo: Helô morreu.

[Agora, quase doze horas depois, envergonha-me ter implícito que quinta-feira cedo não é uma boa hora para morrer. A morte é sempre um feriado inventado às pressas.]

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O mais profundo obituário que já escrevi foi sobre Victor Folquening. O tempo é uma noite escavando a eternidade e logo se completam dois anos de sua morte. Escrevi muitos obituários depois, mas foram apenas redigidos. Não se deve escrever obituários de amigos, é como se desgraçar publicamente.

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São nove horas e minha irmã precisa ir a revistaria acertar as devoluções de material da semana. Helô era jornaleira. Trabalhava com minha irmã, uma no período da manhã, outra de tarde. Morreu de insuficiência renal, não resistiu à hemodiálise.

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Nos dois anos que trabalhei diariamente em banca de jornal, o pior era o domingo, acordar sete horas e não sucumbir até meio-dia. Eu tinha vinte e poucos anos e geralmente avançava na madrugada anterior. Mas tinha vinte anos e era autoconsiderado invencível. Recordo de um rapaz que vinha de muito longe, sempre de bicicleta, comprar a Gazeta do Povo. Queria o caderno de Empregos e Classificados, estava desempregado. Certa vez, apareceu na segunda-feira com uma proposta indecorosa: queria que eu destacasse o caderno necessário, estava sem dinheiro pra comprar o jornal, iria me recompensar no futuro.

Estou emotivo hoje, então, quase choro ao lembrar o dia em que a mulher dele, uma moça bem magrinha e simples, me trouxe, sozinha, um bolo de caixinha num domingo qualquer, agradecendo pelo mês e meio em que o marido ganhou o jornal na segunda-feira.

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Em novembro tivemos a Feira do Livro de Araucária. Foi ruim, foi pesado. Acredito ter sido muito paciente com os organizadores, mas Helô estava furiosa. No ano anterior tinha sido muito bom e ela elencou-me com energia as diversas e pertinentes coisas que foram mal realizadas na Feira. Deviam ouvir a Helô. Comprei dela uma coleção de vinte e cinco volumes de gramática e dois livros do Saramago por dez reais. Almoçamos juntos alguns dias e ela cuidava também do meu estande com a minha sobrinha – às vezes chegavam hordas de crianças revirando tudo, ela evitava o pior e sabia muito bem disso de vender. A chefe dela e de minha irmã dizia que as duas juntas pareciam uma feira turca.

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É nove e meia e combino de levar minha irmã ao cemitério. Deito na cama porque o quarto é o único lugar com ventilador da casa e incorpora-me uma tristeza arrasadora, de tudo perder-se e melhor se esquecido. Vou dormir pra ver se não choro, não quero seguir em frente hoje.

Descanse em paz, Helô jornaleira.

Iara Amaral

Iara Amaral

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