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Ricardo Pozzo
Ricardo Pozzo| Foto:

Meu amigo diz-me, às avessas do centenário do Poetinha, que nenhum escritor e estudioso sério deve levar Vinicius de Moraes muito em conta. Penso, com meu copo meio cheio e cobiçando duas moças que se beijam no lado de fora do bar, o que eu tenho de seriedade pra ofertar.

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1h59 e a noite de sábado não se recorda de mim: estou aqui, solenemente só, pensando em você. Viver numa casa de habitante único é como ter um relógio de pulso que não se rememora, encravado para sempre na mesma hora – penso em como te mostrar, minha casa, a esta rainha africana de mãos agitadas e delicadas. Com qual coração ela tocará suas fibras quando começar a chover forte e o teto ameaçar desabar de sonhos?

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Achei que a morte daria um bom tema de aula. Reli alguns trechos de A Divina Comédia, conferi as estatísticas recentes de mortes violentas na Vila Verde, revi alguns quadros do Salvador Dali, transpassei minhas memórias e parti à sala, que, na verdade, é uma edícula que se traveste de capela mortuária também. Inclusive, no fim de semana teve velório. Na segunda-feira o chão estava vestido de líquidos que vazaram dos caixões e tinha um cachorro decapitado na porta de entrada. Perguntei aos adolescentes de suas primeiras lembranças. Um menino disse ser a morte do tio. Outra comentou o atropelamento do cachorro. Um afirmou a morte da mãe, aos dois anos. Outra o aborto de seu primeiro filho, aos 12 anos.

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Poderia te contar de meu dia, meu amor, mas, ode à ausência, por todos os lugares que percorri apenas deixei vestígios de quem inexistiu, como um pássaro morto à luz do dia. Hoje não me pertenci e entreguei meu corpo ao ato de quebrar, juntar e suturar-me calmamente em minhas melhores agulhas. Deixe-me vestir seus óculos para enxergar-me ao menos uma vez na vida, conte-me de seu passado até aquilo que você não fez, a nossa história é repleta de pequenos assassinatos, impérios que caíram em ruas sem saída, mágoas que jantamos antes das visitas chegarem e comentarem a nova mobília de nossos abraços.

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Conheci a obra do paulistano Rafael Altério e estou narcotizado numa canção chamada Quando o galo cantar, do álbum Santo de Casa. Ouça, ouça, é incrível – ele anda com uma gente da estirpe de Jane Duboc, Toninho Ferragucci, André Mehmari…  A grande canção deste trabalho é, sem dúvida, Dio Zambi, dele com Celso Viáfora, que relata o processo semelhante à escravidão por qual passaram os imigrantes italianos após a alforria dos negros no Brasil.

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Não gostei do show do Lenine na Corrente Cultural, uma barulheira eletrônica descomunal, atraso de quase uma hora, um anão contando piadas ruins para entreter o público. Talvez seja um sintoma de velhice, mas ando sem paciência com shows abertos, sem esferografia. É impossível ter qualquer relação artística com a música quando mal se consegue ouvir o que o sujeito canta. Entendo ser assim, entendo, mas não é pra mim. [Também preciso urgentemente estudar mais sobre música para poder te escrever o que mais foi mal neste show, estudar para traduzir tecnicamente o que foi evidente em meu coração.]

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Lembro-me de Verlaine e me lembro de você e me escoo neste poema dele, que não lembro o nome e é mais ou menos assim:

Tenho muitas vezes este sonho estranho e penetrante

De uma mulher que amo e me ame

E que não é, de cada vez, nem completamente, a mesma

E me ama e me compreende

Seu nome? Lembro que é doce e sonoro

Como o dos seres amados que a vida exilou

 

Eu só queria que você estivesse aqui.

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Talvez todo mundo saiba da bela crônica que Rubem Braga escreveu sobre um ano da morte de Vinicius de Morais, em 1980. Chama-se Recado de Primavera e também batiza a coletânea de 1984. Gosto mesmo desse livro, o mais coeso de toda a trajetória braguiana. Tem uma história muito boa do Poetinha:

O pombo

Vinícius de Moraes contava ter ouvido de uma sua tia-avó, senhora idosa muito boazinha, que um dia ela estava na sala de jantar, em sua casa do interior, quando um lindo pombo pousou na janela. A senhora foi se aproximando devagar e conseguiu pegar a ave. Viu então que em uma das patas havia um anel metálico onde estavam escritas umas coisas.
— Era um pombo-correio, titia. Pois é. Era muito bonitinho e mansinho mesmo. Eu gosto muito de pombo.

— E o que foi que a senhora fez?

A senhora olhou Vinícius com ar de surpresa, como se a pergunta lhe parecesse pueril:

— Comi, uai.

 

É bem como diz Braga, nós vamos ficando por aqui, vigiando as ondas, o mar, os pássaros, lidando com nossas febres amorosas.

 

Ricardo Pozzo

Ricardo Pozzo

 

 

 

 

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