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1.

É 31 de dezembro. Talvez 11h, pois estou sem o celular-relógio. Milhares de pessoas numa faixa mínima de areia, o que, no caso de Balneário Camboriú, significa a maior concentração de mulheres siliconadas por metro quadrado.

Podemos especular outras significações evidentes nesta praia que tem um rio – Itajaí? Camboriú? Marambaia? – a desembocar incrivelmente poluído e fétido: tiram-se muitas fotografias por minuto. Cada celular parece uma metralhadora de efeito hilariante. Como não dormi muito bem, pois tomei um torrão sensacional no dia anterior e as minhas costas parecem uma transposição de algum bife argentino, as crianças e suas bolas de trajetórias sempre imprecisas estão a me irritar também. Os argentinos, não, e são muitos. Apenas lamento não conseguir entender nada do que falam, pois disparam palavras com a velocidade do lixo que se acumula à beira-mar – as lixeirinhas desenvolvidas pela Prefeitura são cômicas e inócuas.

Um problema notório do sol a pino é que a cerveja esquenta rapidamente e também deixa o mar excessivamente agitado, uma relação que criei agora com o objetivo manifesto de afrontar a imensidão do oceano – gostaria muito de conhecer quem criou a atração do Barco Pirata, de Barra Sul, o maior espetáculo brega/hipster depois dos pedalinhos curitibanos do Passeio Público.

[Gosto de dizer sol a pino porque aprecio a incursão no erro. É também uma expressão de contornos poéticos. Se você não sabe, sol a pino quer dizer o momento máximo em que o sol atinge o zênite. Zênite! Que palavra, não? Fenômeno pouco comum nas zonas tropicais, é agregado à capacidade singular de eliminar as sombras, que estarão exatamente abaixo dos objetos que as produzem. Acontece bem pouco e tem algo a ver com o Trópico de Capricórnio, mas meus conhecimentos técnico-solares não chegam a tanto.]

Abro mais uma cerveja. Passa uma morena grávida, de cabelos bem longos e ampla barriga à mostra, gravidez de uns sete meses, calculo, expert que sou na arte de avaliar gravidez na praia. Ela anda lentamente, chutando um pouco de areia com o pé direito. Ela é linda, leve, pacífica, e todo o litoral passa, então, a fazer sentido e a resplandecer.

 

Ricardo Pozzo

Ricardo Pozzo

2.

Balneário Camboriú é uma metrópole de muitos prédios gigantes e arquiteturas sóbrias. Quase não se veem pichações e o atendimento ao público em mercearias, panificadoras e quiosques é equino, padrão habitual de quase toda cidade grande, de fato. Passo por uma ponte que dá acesso à praia e reitero que a água é tão podre, escura e parada que posso levantar a hipótese de que a explosão do fim ao mundo começará deste ponto do cosmos. Certamente há elementos radioativos nessa água.

Ouve-se muita música sertaneja contemporânea nas ruas, já que o sujeito que aprecia tal arremedo musical raramente se contenta com a fruição em volume moderado. Para que você não diga que estou rabugento hoje, a canção que versa sobre um DJ que está mais louco que o padre do balão sempre me arranca um sorriso de canto, que tento tornar imperceptível aos transeuntes.

Está garoando timidamente – o que sempre me remete ao fim da narrativa de Eduardo Galeano sobre Lampião – e a fome começa a gerar um pequeno bebê-dinossauro dentro de mim. Crianças correm desesperadamente atrás de um vendedor de algodão doce. Gritam ao vendedor, gritam aos pais por dinheiro. Uma moça de beleza espetacular – e estamos a falar de Balneário Camboriú, não se esqueça, onde a beleza padronizada das mulheres parece ser o estágio natural de toda a humanidade – se levanta de seu banho de meio-dia, o que faz com que eu me afogue em pleno ato nobre de tentar zerar a minha cerveja choca.

Ela caminha até o mar como se estivesse pisando em cacos, confere a parte traseira de seu biquíni, que está bem boa, fique tranquila, moça, e chega ao primeiro braço d’água. Numa atitude que me pareceu pouco prática, ela se abaixa para ver se a água está gelada. Então, se levanta, bate as mãos para se livrar de tal líquido pavoroso, e molha o pé esquerdo, o que me emociona um pouco, pois sempre acredito no poder maçônico dos canhotos; acho que deveríamos nos abraçar, inclusive. Mas ela desiste do mar e diz à mãe, aborrecida, que a água está muito gelada e suja, o que é um disparate, já que a água não está tão gelada assim.

Penso que talvez ela não seja tão bonita e a minha memória afetiva é que esteja se evadindo. Sei agora o que se passa. Ela lembra-me a encantadora prostituta Soraia, que, por sinal, encontrei num supermercado curitibano dois dias antes. Acho que estava com o filho pequeno, especialmente agitado. Tenho certeza que ela me reconheceu, pois sorriu de maneira cifrada, levando meu coração à morte e à ressurreição em três segundos.

Acompanho todo o ritual da Soraia catarinense de se adaptar novamente à canga no chão. Ela se ajeita com graciosidade duvidosa e reclama com a mãe da areia. Está entediada. Tira o celular da bolsa e confere todas as fotografias recentes com o seu biquíni azul. Então, ela mira o celular ao rosto como se ele fosse um pedestal, sorri de maneira espetacularmente falsa, mas como estamos a tratar de uma beleza realmente singular, engana-me facilmente, e realiza um poderoso autorretrato.

Como estou bem pertinho, participo do exercício crítico-matemático de conferir as imagens anteriores: 27 fotos. Não te disse uma coisa antes de terminar: eu gostaria mesmo é de estar em Fortaleza, ao lado da moça de vestido branco e vermelho, mas prometi a mim mesmo que serei mais discreto com os meus amores em 2014.

Mas como é difícil, deus.

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