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Ricardo Pozzo
Ricardo Pozzo| Foto:

Croniqueta dedicada à minha amiga Lis, coração infinito

Quando fiz vinte e cinco anos um amigo muito próximo, com pouco mais de trinta, comentou algo aparentemente tolo, mas que hoje assume um sentido amplo: parecia que eu nunca deixaria de ter vinte anos.

Ele tinha razão.

Lembro-me claramente que aos dezesseis anos queria ter logo vinte e ser, enfim, adulto, partilhar das experiências que a pouca idade me tolhia. Não podia sequer dormir depois da meia-noite. Quando cheguei aos vinte, primeiros vícios a tiracolo, comportei-me tal como a moira de um grego clássico, como se estivesse fadado a morrer jovem. Vivi tudo em excesso.

Mas não tenho mais vinte anos. Nem vinte e poucos. Tenho quase trinta e sinto que sérias transformações operam dentro de mim, algumas de um jeito silencioso, outras como se anunciadas num púlpito – envelheço ainda mais convicto do que meu RG.

A primeira grande mutação é de caráter biológico. Não durmo mais tão bem depois de uma noite de excessos etílicos. Acordo no meio da madrugada com uma sede de três desertos ou amanheço com o corpo arquejado, arrastando-me por todo o dia. Dormir demais também não resolve.

Aos vinte anos, os ideais, além de notoriamente inconclusivos e precários – work in progress –, são mais calorosos. Aos quase trinta, canso até para explicar a uma moça de vinte e poucos anos o que é ironia sentimental. Quase desacredito da possibilidade de algumas pessoas ao redor se libertarem de suas amarras e aceito com certo remorso a burrice congênita. A preguiça de discutir com as pessoas de vinte anos e suas certezas de livros mal lidos é arrasadora, mas também não tenho muita paciência para o pessimismo dos mais velhos.

Com quase trinta, é mais difícil se relacionar com as mulheres de vinte e suas oscilações emocionais, justificadas, de todo modo, por serem jovens e terem vinte apenas uma vez. Parafraseando Piaf, qual a graça de ser jovem se não se pode ser em demasia? Mas cansa. Cansa explicar a uma mulher jovem que não mais nos interessa o desequilíbrio, não mais nos interessa o ciclo de relacionamentos doentios – já tivemos algumas chuvas para se queimar –, não mais nos interessa o que é indefinido. Busca-se o que amplia, não o que fragiliza. Os excessos sexuais também não parecem mais nada.

[De uns dias pra cá, até meus vícios andam tristes e bebo com alguma culpa desconhecida. Irrita-me, sobretudo, toda mulher de vinte que faz da maconha uma plataforma de resolução. Entretanto, o que são meus vícios senão a constatação da impossibilidade de ser em tempo integral?]

Aos quase trinta, já posso olhar para o passado com alguma nostalgia, mas pouca porque é bem possível ter muita vergonha do que fui – e nem foi há tanto tempo assim – e me perguntar onde foram parar nomes que pareciam eternos e sempre alcançáveis. Uns casaram, outros se recusam a envelhecer, alguns estão decrépitos e, no exercício noturno de derrubar estrelas ao chão, percebo que não tenho mais do que cinco amigos.

Aos quase trinta, tenho medo.

Medo de minhas escolhas trabalhistas.

Medo de meu corpo a cada dia mais desconstituído. Jogar futebol com os jovens de vinte anos, por exemplo, é cada vez mais humilhante. Eles sentem prazer em me derrubar, tal como um rei velho deposto.

Medo da filha que não tenho e não sei se irei ter.

Medo da condenação à solidão, mesmo sabendo dos muitos dias de isolamento voluntário.

Medo de se apaixonar e se tornar jovem a fórceps.

Medo de que meus pais morram.

Medo das palavras que desnorteiam convicções, inerentemente imprecisas.

Medo de não entender o fluxo contemporâneo.

Aos quase trinta, escrevo no fim da madrugada e um sol tímido se anuncia na janela de meu quarto. Levanto e abro a porta da sala. O caseiro que cuida da casa de minha mãe, talvez uns sessenta anos, está trabalhando e me cumprimenta enquanto limpa o jardim.

De certo modo, ele abre meu dia para dizer sutilmente o quanto há de vida à frente, vida fluente em toda a sua dificuldade e esplendor. Envelheço mal no intervalo impreciso de minhas dores e sonhos.

*

[Relembro um amigo morto que sempre pedia na redação para que tomasse cuidado com as duplas sertanejas, como amor e dor, veloz e furioso. Desculpe-me, meu caro. Você faz falta.]

Ricardo Pozzo

Ricardo Pozzo

 

 

 

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