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Pago com prazer para ser enganado
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Em A Rosa Púrpura do Cairo, Mia Farrow é uma dona de casa que busca refúgio no cinema.

Suspensão da descrença é um termo engraçado, muito empregado por quem estuda teoria e crítica de cinema, mas pouco conhecido do grande público. Sempre gostei da expressão – e da ideia metafórica nela embutida.

Antes de entrarmos em uma sala de exibição, ou mesmo de colocar um filme para rodar no DVD player, devemos muitas vezes pendurar o ceticismo em um cabide imaginário. A proposta é, a partir de um acordo tácito inerente ao ritual todo, embarcar na trama como se fôssemos passageiros em uma jornada lúdica, sabendo que, ao longo do percurso, haverá acontecimentos cruciais à trama, ou meros detalhes, que fugirão à lógica racional e à verossimilhança.

Há quem não tenha o desapego, o temperamento, de abrir mão dessa tal descrença. Precisam dela o tempo todo como de um agasalho protetor. Querem levar o casaco na mão, colocá-lo no colo, no caso de sentir frio durante a projeção. Entenda-se como “frio” não uma falha no sistema de ar-condicionado, mas o desconforto que muitos sentem ao serem desafiados em suas certezas, onde estão encastelados, aparentemente protegidos.

E pode ser Moisés abrindo o Mar Vermelho. Um sujeito cantando e dançando na rua sob a chuva que cai. A morte jogando xadrez com um cavaleiro medieval. Ou mesmo uma nave especial flutuando no espaço ao som da valsa “Danúbio Azul”, a anos-luz da Terra. A reação será parecida. Entre o enfado e o desdém, com direito a suspiros de impaciência e até a ares de superioridade – sim, a descrença pode se transformar em pretensão.

Eu não pertenço a categoria dos incrédulos, mas consigo compreender os detratores de árvores falantes que andam, de histórias de fantasmas e, sobretudo, dos musicais.

Falando nesse gênero fundamental do cinema sonoro – O Cantor de Jazz (1927), primeiro longa-metragem falado da história, já trazia números musicais com o cantor e ator Al Jolson –, muita gente fica furiosa quando, no meio da história, um personagem começa a cantar seus diálogos ao invés de falar. Alguns bufam, se levantam e vão embora, enquanto outros tantos deslizam aos poucos em sono profundo. É a tal descrença esperneando, se debatendo.

Em meio a tanta relutância, costumo acompanhar o ritmo das canções do filme com o pé, quando não canto junto, ainda que mentalmente, para evitar vexames. Há, para mim, algo encantador nesse momento em que a realidade sai de cena ou se transforma, dando lugar ao imaginário, ao fantástico ou ao meramente improvável. Escapismo? Claro que sim.

Pago com prazer para ser enganado. Na mesma medida em que me delicio vendo e revendo clássicos do neorrealismo italiano ou assistindo a dramas contemporâneos que mais parecem documentários de tão colados a uma suposta noção de “vida real”.

Woody Allen, num de seus filmes mais sublimes, A Rosa Púrpura do Cairo, levou às últimas consequências o conceito da suspensão da descrença. E a transformou em tema central.

Numa Nova York sombria e triste, mergulhada na Grande Depressão do início dos anos 30, Mia Farrow vive Cecilia, uma dona de casa maltratada pelo marido (Danny Aiello) que encontra no cinema um refúgio, onde por algumas horas sua realidade fica do lado de fora, banida do campo dos sonhos.

O mergulho de Cecilia no que acontece na tela é tão profundo que, numa das muitas sessões vespertinas que costuma frequentar, ela é abduzida pelo filme e vive com seu galã (Jeff Daniels) um breve idílio, cujo desfecho não é dos melhores. Quando é a vez do seu “salvador” deixar o mundo imaginário para entrar na vida real, ele perde a graça e se revela até mais inútil à heroína do que o marido.

Suspender a descrença, portanto, não é um pacto totalmente livre de responsabilidades, ainda que não tenhamos, felizmente, total consciência delas. Não se trata de um contrato assinado. Na saída da sessão, ao término dos cré­­ditos finais, contudo, não po­­demos de esquecer de resgatar o tal casaco, ainda que algumas horas mais tarde, para quando a realidade nos cobrar o ingresso.

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