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A África na retina de um Nobel de Literatura
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Veja fotos tiradas pelo escritor Lé Clézio, vencedor do Nobel de Literatura 2008. As fotos ilustram o livro O Africano, editado no Brasil pela Cosac Naify.

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Trecho de O Africano

“Nós não íamos à escola. Não tínhamos clube, nem atividades esportivas, nem regras, nem amigos, no sentido que se dá a essa palavra na Inglaterra ou na França. A lembrança que eu tenho desse tempo bem poderia ser a do passado a bordo de um navio, entre dois mundos. Quando olho hoje a única foto que conservei da casa de Ogoja (uma imagem minúscula, na cópia 6 x 6 comum após a guerra), custo a crer que o lugar é o mesmo: um grande quintal aberto, onde crescem em desordem palmeiras e flamboaiãs, atravessado por uma aléia retilínea onde está estacionado o monumental Ford V8 de meu pai. Uma casa bem simples, com um telhado de chapas onduladas e, ao fundo, as primeiras grandes árvores da floresta. Há algo de frio, de quase austero, nessa foto única, que evoca o império, mistura de campo militar, gramado inglês e poderio natural que só voltei a encontrar, muito tempo mais tarde, na zona do canal do Panamá.

Foi aqui, neste cenário, que vivi os momentos de minha vida selvagem, livre, quase perigosa. Uma liberdade de movimentos, pensamentos e emoções que nunca mais conheci depois. As lembranças, por certo, enganam. Essa vida de liberdade total, eu a terei, sem dúvida, mais sonhado que vivido. Entre a tristeza do sul da França durante a guerra e a tristeza do fim de
minha infância na Nice dos anos 50, rejeitado por meus colegas de classe devido à minha estranheza, atormentado pela excessiva autoridade de meu pai, exposto à enorme vulgaridade dos anos de colégio, dos anos de escotismo e, a seguir, durante a adolescência, à ameaça de ter de partir em guerra para manter os privilégios da última sociedade colonial.

Os dias de Ogoja tinham se tornado então meu tesouro, o passado luminoso que eu não podia perder. Lembrava do fulgor na terra vermelha, o sol que rachava o chão das estradas, as andanças descalças pela savana até os fortins dos cupinzeiros, a tempestade se armando à tarde, os gritos e ruídos das noites, nossa gata a fazer amor com os bichanos em cima do telhado de chapas e o torpor que vinha com a febre, de madrugada, no frio que entrava pelo cortinado do mosquiteiro.

Todo aquele calor, aquela queimação, esse arrepio.”

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