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Leia trecho de livro do Nobel de Literatura 2008
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O francês Jean-Marie Gustave Le Clézio, pouco conhecido no Brasil, conquistou o Nobel de Literatura 2008. O escritor tem meia centena de livros publicados, mas poucos chegaram às livrarias brasileiras.

Leia abaixo trecho de O Africano, editado pela Cosac Naify. Le Clézio narra uma viagem à África, contada por um homem que percorre o caminho feito por seu pai, que viveu no continente por mais de duas décadas. A história começa nos anos 30 e vai além da Segunda Guerra Mundial.

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Literature Festival Internazionale di Roma/Reuters
Le Clézio, na visão da Academia Sueca: “Explorador da humanidade, dentro e fora da civilização dominante”.

“Todo ser humano é um resultado de pai e mãe. Pode-se não reconhecê-los, não amá-los, pode-se duvidar deles. Mas eles aí estão: seu rosto, suas atitudes, suas maneiras e manias, suas ilusões e esperanças, a forma de suas mãos e de seus dedos do pé, a cor dos olhos e dos cabelos, seu modo de falar, suas idéias, provavelmente a idade de sua morte, tudo isso passou para nós.

Por muito tempo sonhei que minha mãe era negra. Inventei-me uma história, um passado, para escapar da realidade em meu retorno da África, neste país, nesta cidade onde eu não conhecia ninguém, onde me tornara um estrangeiro. Depois descobri, quando meu pai, na idade da aposentadoria, retornou para viver conosco na França, que o Africano era ele. Foi difícil admitir isso. Tive de voltar atrás, de recomeçar, de tentar compreender. Em memória disso escrevi este
pequeno livro.

O corpo

Tenho coisas a dizer deste rosto que recebi em meu nascimento. Primeiro, foi preciso aceitá-lo.
Afirmar que não me agradava seria dar-lhe uma importância que ele não tinha quando eu era criança. Eu não o odiava: ignorava-o, evitava-o. Não o olhava nos espelhos. Durante anos, creio que nunca o vi. Desviava os olhos das fotos, como se alguma outra pessoa tivesse se posto em meu lugar.

Aos oito anos de idade, mais ou menos, vivi na África ocidental, na Nigéria, numa região muito isolada onde não havia europeus, à exceção de meu pai e minha mãe, e onde a humanidade, para a criança que eu era, se constituía unicamente de iorubás e ibos. Na choupana em que nós morávamos (a palavra choupana tem algo de colonial que hoje em dia pode chocar, mas que descreve bem a residência funcional prevista pelo governo inglês para os médicos militares, uma laje de cimento por piso, quatro paredes de blocos sem emboço, um telhado de chapas onduladas recoberto de folhas, nenhuma decoração, redes penduradas nas paredes para servir de camas e, única concessão ao luxo, um chuveiro ligado por canos de ferro a uma caixa d’água no telhado, que esquentava ao sol), nessa choupana portanto não havia espelhos, nem quadros, nada que pudesse lembrar-nos do mundo em que tínhamos até então vivido. Um crucifixo que meu pai
pendurara na parede, mas sem representação humana. Foi aí que eu aprendi a esquecer. Parece-me que da entrada nessa choupana, em Ogoja, é que data o apagamento de meu rosto e dos rostos daqueles, todos eles, que me rodeavam.

Desse tempo, por assim dizer consecutivamente, data o aparecimento dos corpos. Meu corpo, o corpo de minha mãe, o corpo de meu irmão, o corpo dos garotos da vizinhança com os quais eu brincava, o corpo das mulheres africanas nos caminhos, ao redor da casa, ou então no mercado, perto do rio. Sua estatura, seus seios pesados, a pele luzente de suas costas. O sexo dos garotos, sua glande rosa circuncisa. Rostos, sem dúvida, mas como máscaras de couro, endurecidos,
riscados de cicatrizes, de marcas rituais. Os ventres protuberantes, o cotoco do umbigo parecendo um calhau costurado sob a pele. Também o cheiro dos corpos, o tato, a pele nada áspera, mas quente e suave, eriçada em milhares de pêlos. Tenho essa impressão da grande proximidade, do
número de corpos ao meu redor, coisa que eu não havia conhecido antes, coisa nova e familiar ao mesmo tempo, que excluía o medo.

Na África, a falta de pudor dos corpos era magnífica. Dava profundidade, dava alcance, multiplicava as sensações, estendia à minha volta uma rede humana. Harmonizava-se com a região dos ibos, com o traçado do rio Aiya, com as choupanas da aldeia, seus tetos de cor amarelada, suas pare des cor-de-terra. Tal despudor sobressaía nos nomes que entra vam por mim adentro, significando muito mais do que nomes de lugares: Ogoja, Abakaliki, Enugu, Obudu, Baterik, Ogrude, Obubra. E impregnava a muralha da floresta pluvial que por toda parte nos continha.

Não usamos palavras (e as palavras não se gastam) quando somos crianças. Eu nasci naquele tempo distante, muito longe dos adjetivos, dos substantivos. Eu não posso dizer, nem sequer
pensar: admirável, imenso, poderio. Mas sou capaz de o sentir. A que ponto as árvores de troncos retilíneos se lançam para a abóbada noturna fechada acima de mim, encerrando como num túnel a brecha sangrenta da estrada de laterita que vai de Ogoja a Obudu, a que ponto nas clareiras das aldeias sinto os corpos nus, brilhantes de suor, as silhuetas largas das mulheres, as crianças que as agarram pelos quadris, tudo isso que forma um conjunto coerente, destituído de mentira.

Da entrada em Obudu, lembro-me bem: a estrada sai da sombra da floresta e penetra diretamente na aldeia, em pleno sol. Meu pai parou seu automóvel e, com minha mãe, tem de ir falar com os funcionários. Sozinho no meio do ajuntamento, não tenho medo. As mãos me tocam, passam pelos meus braços, por meu cabelo, em volta da beira do meu chapéu. Entre tantos que em torno de mim se espremem, há uma mulher idosa que afinal nem sei se é velha. Acho que sua idade é o que primeiro chama minha atenção, porque ela é diferente das crianças peladas e dos homens e mulheres vestidos mais ou menos à ocidental que em Ogoja eu vejo. Quando minha mãe volta (talvez um pouco inquieta com aquele amontoado de gente), mostro-lhe a tal mulher: “Que é que ela tem? Ela está doente?” Lembro-me dessa pergunta que fiz à minha mãe. O corpo nu dessa mulher, feito de dobras, de rugas, sua pele como um odre vazio, seus seios longos e flácidos, caindo sobre a barriga, sua pele rachada e desbotada, meio cinzenta, tudo isso me pareceu estranho e, ao mesmo tempo, verdadeiro. Como eu teria podido imaginar que essa mulher fosse minha avó? O que eu sentia não era horror nem pena, mas sim, ao contrário, esse amor e o interesse suscitados pela visão da verdade, da realidade vivida. Lembro-me apenas da pergunta – “Ela está doente?” – que ainda hoje me abrasa estranhamente, como se o tempo não tivesse passado. E não da resposta, por certo tranqüilizadora, talvez um pouco sem jeito, de minha mãe: “Não, não está doente, ela é velha, só isso”. A velhice, sem dúvida mais chocante para um menino no corpo de uma mulher porque ainda, porque sempre, na França, na Europa, nos países das anáguas e cintas, das combinações e sutiãs, as mulheres normalmente estão imunes à doença da idade. O abrasamento que ainda sinto nas faces, que acompanha a pergunta ingênua e a resposta brutal de minha mãe, como uma bofetada. Isso ficou em mim sem resposta. Claro que a pergunta não era: Por que essa mulher acabou assim, gasta e deformada pela velhice?, mas: Por que mentiram para mim? Por que me esconderam essa verdade?”

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