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Uma brecha para o loteamento político nas estatais e agências reguladoras
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Deputados usam projeto das agências reguladoras para mudar lei das empresas estatais e permitir a nomeação de dirigentes partidários para cargos de direção

Marcadas por loteamento político, ingerência governamental e captura por parte de mercados regulados, as agências reguladoras passaram a ser alvo de críticas crescentes nos últimos anos. Em meio à pressão de setores da sociedade, deputados se apressaram para destravar um projeto (PL 6621/16) oriundo do Senado que unifica regras de gestão desses órgãos, hoje responsáveis pelo controle de setores da iniciativa privada que representam quase 60% do PIB nacional.

O projeto, batizado de Lei Geral das Agências Reguladoras, foi aprovado em comissão especial da Câmara em julho. O texto final, um substitutivo do deputado Danilo Forte (PSDB-CE), poderia ser considerado um avanço não fossem pequenos detalhe, ou melhor, mudanças quase imperceptíveis introduzidas de última hora na proposta original. Os deputados aproveitaram o conjunto de mudanças apresentadas na casa para aprovar dispositivos que permitirão a nomeação de dirigentes partidários para a direção das agências e também de parentes de políticos.

Os efeitos dessa permissão – apesar de desastrosos, na avaliação de especialistas – ficariam limitados às agências não fosse uma outra jogada dos deputados: eles aprovaram um artigo que revoga a parte da Lei das Estatais que proíbe exatamente a nomeação de “pessoa que atuou, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral”.

Se não for derrubada, essa medida abrirá uma grande porteira para ampliar o loteamento político não só nas agências, mas principalmente nas empresas públicas. Para alguns analistas, será o fim da moralidade que se pretendia com a aprovação da Lei das Estatais, dois anos atrás.

Foto: FGV Direito SP

Se aprovado do jeito que está, com a revogação do dispositivo que impedia as nomeações de dirigentes partidários, nós vamos ter sérios problemas de nomeação de diretores nas agências e das estatais.Juliana Bonacorsi de Palma, professora e pesquisadora da FGV-SP.

“Esse é um aspecto supernegativo da mudança no projeto. Se aprovado do jeito que está, com a revogação do dispositivo que impedia as nomeações de dirigentes partidários, nós vamos ter sérios problemas de nomeação de diretores nas agências e das estatais”, diz a professora Juliana Bonacorsi de Palma, pesquisadora da FGV Direito SP.

Egon Bockmann Moreira, professor da Faculdade e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, vê um grande risco para as empresas estatais com a permissão para nomear dirigentes de partidos e parentes de políticos. “O loteamento político vai aumentar absurdamente e as empresas vão perder valor de mercado”, avalia.

O temor de mais ingerência política tem seus fundamentos. Um levantamento feito pelo jornal O Globo em julho mostra que, em oito das 11 agências reguladoras federais, de 40 cargos executivos, 32 são ocupados por nomes indicados por políticos e outros três estão prestes a serem preenchidos pelo mesmo critério.

Como integrante de um grupo que atuou na elaboração de um esboço do projeto de lei geral das agências reguladoras, em 2015, Moreira prevê dificuldades para a retomada da moralidade na gestão pública caso o projeto seja referendado no Senado da forma como passou na Câmara. “Esse ponto da Lei das Estatais é uma grande conquista da sociedade brasileira. Se derrubarem agora, não vai ser tão cedo que se conseguirá reverter essa decisão”, prevê.

Outras mudanças

Não fosse o ‘drible’ dos parlamentares quando o jogo parecia ter terminado, a proposta de Lei das Agência Reguladoras poderia permitir avanços significativos em termos de gestão e controle social. Algumas medidas previstas são decisivas para garantir a esses órgãos o cumprimento pleno de suas funções, que são controlar a qualidade dos serviços prestados à população em setores vitais como energia elétrica, saúde, telecomunicações, petróleo, rodovias, ferrovias e aeroportos.

Entre as medidas elogiadas destaca-se a proibição de diretores serem reconduzidos ao cargo depois de um mandato. Os dirigentes passarão a ter mandato de cinco anos, sem a possibilidade de recondução. Atualmente o período é de quatro anos com direito à renovação.

Uma proposta de setores que defendem mecanismos para garantir a autonomia e independência das agências também foi introduzido no texto. A nova redação garante, em seu artigo 14, que “os agentes públicos em exercício nas agências reguladoras não serão responsabilizados por suas decisões ou opiniões técnicas, ressalvadas as hipóteses de dolo, fraude ou erro grosseiro”. Esse mecanismo seria uma forma de ‘blindar’ os gestores de ações politiqueiras. O artigo também estabelece que “nas análises dos atos emanados pelas agências reguladoras, os órgãos de controle devem se abster de emitir determinação ou penalidade por mera divergência de entendimento técnico quanto ao mérito de ato regulatório de cunho finalístico”. A medida é, na avaliação dos defensores do texto, uma forma de impedir que o Tribunal de Constas da União (TCU) tome para si as funções de regulador, o que função restrita das agências.

Outro ponto favorável, na avaliação de especialistas, são o estabelecimento de critérios para a nomeação de dirigentes das agências. Além de reputação ilibada e notório conhecimento no campo de sua especialidade, o projeto estabelece tempo mínimo de experiência profissional que os presidentes e diretores devem ter no setor público ou privado dentro do campo de atividade da agência reguladora.

Quem regula o quê

Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)

Telefonia (fixa e móvel), internet e TV por assinatura.

Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)

Serviços públicos de energia elétrica, tais como geração, a transmissão, a distribuição e a comercialização da energia elétrica.

Agência Nacional do Cinema (Ancine)

Produção, distribuição e exibição de obras cinematográficas e videofonográficas.

Agência Nacional de Aviação Civil (Anac)

Serviços aéreos e de infraestrutura aeronáutica e aeroportuária.

Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq)

Atividades de prestação de serviços de transporte aquaviário e de exploração da infraestrutura  portuária e aquaviária.

Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT)

Atividade de exploração da infraestrutura ferroviária e rodoviária federal e da atividade de prestação de serviços de transportes terrestres.

Agência Nacional do Petróleo (ANP)

Atividades de exploração, desenvolvimento, produção e comércio de petróleo e gás natural.

Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)

Controle sanitário da produção e comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, processos, insumos e das tecnologias a eles relacionadas.

Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)

Atividades relativas às operadoras de planos de saúde, prestadores de serviço (médicos, laboratórios e hospitais) e consumidores.

Agência Nacional de Águas (ANA)

Recursos hídricos nos corpos d’água de domínio da União e as condições de operação de reservatórios por agentes públicos e privados.

Agência Nacional de Mineração (ANM)

Atividades relacionadas à exploração mineral e o aproveitamento dos recursos minerais.

Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro)*

Verificação das normas técnicas e legais, no que se refere às unidades de medida, métodos de medição, medidas materializadas, instrumentos de medição e produtos.

*O Inmetro foi incluído no projeto de Lei Geral das Agências Reguladoras aprovado na Câmara.

 

Entrevista

Sandro Cabral, professor do Insper na área de estratégia.

Uma lei geral vai revolver o problema de loteamento político?

As agências sempre estiveram sujeitas a interferências políticas, em todos os governos. Não adianta dizer que é governo tucano ou governo petista ou de qualquer outro partido. O aparelhamento das agências tem sido inevitável, o que a gente chama de mecanismo de porta giratória: o sujeito está agência reguladora, vai para a indústria regulada ou está dentro na empresa regulada e vai para a agência.

Como essa prática se consolidou?

Nós temos um problema no Brasil que é o presidencialismo de coalizão, em que os governos precisam conquistar apoio dos parlamentares de diversos partidos para ter o mínimo de chance de implantar suas agendas, para sobreviver. E temos um Congresso que, em certas medidas, está lá não para atender os interesses da população e sim de grupos ali instalados.

O projeto que pretende regular as agências vai reverter esse quadro?

Sem uma reforma política não vejo muita esperança com esse projeto. A própria questão de indicações, havia sido feito uma legislação para limitar as indicações de políticos, mas isso não funcionou. Com um Congresso como esse não sei se eu posso ter o direito de ser otimismo. Com o que se avizinha para o próximo governo, qualquer que seja o governo, haverá um congresso voltado para interesses fisiológicos.

Mas os problemas nas agências não se restringem aos políticos…

Existem outros problemas com as agências. Ainda que sejam blindadas, muitas de suas decisões podem ser revistas pelo Judiciário ao sabor das convicções ideológicos dos juízes. Um Judiciário que reverte decisões tomadas com bases técnicas ao sabor de uma crença só prejudica. Em resumo, nós temos o problema da captura, o problema do Congresso e as decisões do Judiciário que nem sempre são baseadas em fundamentos técnicos.

Pesquisadora vê falhas na estrutura da ANS

Uma decisão da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, no último dia 16 de julho trouxe à tona uma polêmica que há muito vem sendo alimentada no país.  A ministra suspendeu resolução da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que prevê que operadoras de planos de saúde poderão cobrar de clientes até 40% do valor de cada procedimento realizado.

A decisão de Cármen Lúcia fez suscitar críticas dos que acusam a ANS de favorecimento das empresas de plano de saúde, assim como reclamações das prestadoras de serviço por ingerência do Judiciário em questões em que a agência deve ter independência para decidir. No meio da polêmica não faltaram também acusações de captura da ANS pelas empresas.

A professora e pesquisadora em Direito da FGV Juliana Bonacorsi de Palma diz que, independentemente da polêmica após a decisão da presidente do STF, é preciso admitir que a estruturação da ANS foi errática desde o início.

“As agências reguladoras se caracterizam por terem autonomia e independência, elas têm plena capacidade decisória, independentemente do Judiciário, do Legislativo e da própria administração pública. Agora, a redação da lei da ANS, do ano de 2000, é errática porque traz a figura do contrato de gestão, celebra contrato de gestão com o Ministério da Saúde. Há aí uma seríssima ingerência do ministério dentro da ANS.”

Juliana Palma coordenou uma pesquisa da FGV Direito sobre os processos de nomeação e formação dos quadros de direção das principais Agências Reguladoras voltadas aos setores de infraestrutura. O estudo constatou que apenas 6% dos dirigentes das agências dessas áreas eram oriundos da iniciativa privada.

“A pesquisa não abrangeu a ANS, mas pelo que pude levantar em termos de dados, nessa agência temos uma maior concentração de pessoas que fizeram carreira na iniciativa privada. Outro ponto é que na ANS é permitida a recondução dos dirigentes e, de fato, a recondução é feita. Eu consegui mapear sete casos de recondução. Nas agências de infraestrutura essa prática não é tão comum”, explica.

Para Juliana Palma, o problema da recondução está no fato de que pode criar um incentivo perverso para que o dirigente conquiste a permanência no cargo. “Como ele depende de uma indicação política, como ele depende do presidente da República, que vai estar aliado com o ministro saúde, é possível que esse dirigente acabe não tendo plena autonomia decisória”, avalia.

Em resumo, a pesquisadora aponta três grandes problemas em relação à ANS: 1) uma redação legislativa que contraria a lógica de autonomia e independência, que foi a ideia forte na reforma do estado para criação das agências reguladoras; 2) fortíssima ligação e subordinação ao Ministério da Saúde; 3) na ANS a integração com o setor privado é marcadamente maior que nas agências reguladoras de infraestrutura.

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