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O presidente da Argentina, Alberto Fernández
O presidente da Argentina, Alberto Fernández| Foto: EFE/Juan Ignacio Roncoroni

O presidente argentino Alberto Fernández é um dos maiores entusiastas da importação acrítica das guerras culturais dos Estados Unidos para a América Latina. Agora está colhendo os frutos, a perda da confiança da classe trabalhadora, inclusive de esquerda. Em um artigo para a revista Compact Magazine, cuja leitura eu recomendo vivamente, o escritor Arturo Desimone conta em detalhes como a agenda do identitarismo dos Che Guevara de apartamento foi implementada pelo governo argentino desde a campanha eleitoral.

No governo dele, jornais da mídia mainstream, como Página 12 e Tiempo Argentino passaram a adotar a língua do pê da elite progressista, apelidada por eles de “linguagem inclusiva”. O gênero neutro virou norma ortográfica nessas publicações. Já era na campanha do presidente, que em vez de todEs ou todXs colocava o sol da bandeira argentina no lugar da letra “o” para sinalizar virtude e fingir que é inclusivo.

Se inclusão fosse tão importante, ele, que é um homem branco, abriria mão da candidatura presidencial em nome de uma mulher ou de alguém de alguma minoria argentina. Inclusão não é importante, o importante é sinalizar virtude e se portar como gatekeeper da inclusão para não perder espaço.

Por aqui já estamos vendo o PT, que se deixou infiltrar pela pauta superficial dos influencers da internet, colocar a faca no pescoço de Lula por um ministério mais “inclusivo”.

Arturo Desimone classifica a adoção das pautas delirantes da elite cultural progressista como o canário na mina de carvão da esquerda. Quando um movimento político escolhe deixar em segundo plano e até debochar dos valores da classe trabalhadora para ser capturado pelas manias da elite progressista, o canário morre. É sinal de que o ambiente está tóxico e ameaçando a sobrevivência de todo o movimento.

Por aqui já estamos vendo o PT, que se deixou infiltrar pela pauta superficial dos influencers da internet, colocar a faca no pescoço de Lula por um ministério mais “inclusivo”. Teve gente em evento de campanha substituindo a palavra esclarecer por escurecer para dar a entender que eram antirracistas. Mas, na hora H, o PT puxa o tapete de mulheres e minorias porque não vai abrir mão do espaço dos seus. Diversidade, só na casa do vizinho.

Na Argentina, a coisa é ainda mais bizarra. Ao assumir a presidência, Fernández encampou a agenda do identitarismo em todas as suas formas mais bizarras de luta simbólica. Levou ao delírio certamente esses revolucionários que levantam hashtag de pantufa no quarto enquanto a mãe prepara o lanchinho.

Atrasados no estudo dos fenômenos digitais e arrogantes por pensar que os controlam, os políticos da esquerda latinoamericana acham que podem utilizar o identitarismo a seu favor.

“Uma das primeiras medidas de Fernández como presidente foi renomear o Instituto Nacional da Mulher para Ministério da Mulher, Gênero e Diversidade; no ano passado, ele aumentou o financiamento deste ministério para 3,4% do PIB da Argentina. Ele também comemorou a introdução de uma opção “não binária” para carteiras de identidade como um “grande passo à frente”. Diretrizes e kits para a implementação de reformas linguísticas enfeitam o site e os espaços oficiais do governo argentino. No ano passado, uma nova legislação penalizando a “violência simbólica” foi aplicada para banir com sucesso um programa de animação infantil, Dragonball-Z, das ondas de TV argentinas. (Os personagens supostamente perpetuaram comportamentos de “gênero”.) Praticamente não houve debate sobre possíveis usos indevidos de uma lei que pune qualquer coisa que possa ser vagamente definida como “violência simbólica”, explica o artigo.

Enquanto o governo se dedicou a tarefas tão importantes quando banir o Dragonball-Z da televisão, o presidente perdeu completamente o controle da inflação e se empastelou nas negociações com o FMI. Além disso, o governo enfrenta um escândalo político de proporções gigantescas com a condenação de um dos pilares do partido de Fernández, a ex-presidente Cristina Kirchner.

Políticos da esquerda latinoamericana estão voltando ao poder e pensando que a adesão acrítica ao identitarismo, importação mal feita e mal traduzida da guerra cultural “woke” dos Estados Unidos, será uma arma na mão deles contra os críticos. Será uma arma sim, mas apontada para a própria cabeça.

A forma mais eficiente de perder apoio popular na esquerda é trocar as pautas que interessam ao povo pelas pautas que só interessam a uma elite urbana muito específica. É curiosa a dissonância cognitiva do movimento, útil para que ele seja transformado praticamente numa seita que sacrifica pessoas no altar do Supremo Tribunal da Internet. Toda a pauta moral é em torno da inclusão, mas o movimento é de exclusão.

Pense na “linguagem inclusiva”, por exemplo. É algo tão excludente quanto grifes de luxo. Exatamente por essa natureza exclusiva faz tanto sucesso nas rodas da moda e das galerias de arte, que trabalham com uma cultura da mesma natureza. Se você abandona a norma culta, ensinada em todo o sistema público de ensino, para implementar algo que uma pequena elite inventa e muda diariamente, você está selecionando quem pode ter acesso à leitura e escrita.

Essa elite é quem vai determinar não apenas o que é certo e errado, mas o que é certo e o que vai determinar o seu eterno silenciamento. É um poder gigantesco o de inventar origens nefastas das palavras, espalhar entre seu pequeno grupo elitista que usar essas palavras é ser racista-homofóbico-transfóbico e, a partir disso, começar a pregar o cancelamento de todo mundo que use a palavra amaldiçoada. Só consegue fazer isso quem já é da elite, já tem poder econômico, cultural ou político. Alegam, de forma mentirosa, que a linguagem inclusiva é importante para respeitar os sentimentos da minoria. Se realmente fosse, não estariam levantando hashtag e cancelando os outros por isso, iriam trabalhar.

Se o gênero neutro é tão importante para esse glorioso grupo dos tuiteiros inclusivos, por que não trabalham num Novo Acordo Ortográfico e negociam com os demais países de Língua Portuguesa? Primeiro porque trabalhar é chato e depois porque não poderiam ficar mudando as palavras toda hora para manter o poder.

Atrasados no estudo dos fenômenos digitais e arrogantes por pensar que os controlam, os políticos da esquerda latinoamericana acham que podem utilizar o identitarismo a seu favor. Os influencers desse círculo identitarista são celebrados pelas agências de publicidade e levados a sério por boa parte da imprensa. Assim, ao atender às demandas superficiais que fazem, o político pensa ter conquistado uma máquina de popularidade a seu favor.

Todos os críticos daquele político viram imediatamente alvo do identitarismo. Centenas de influencers vão inventar que a pessoa é racista, misógina, homofóbica, transfóbica, extremista, fascista e nazista. Não precisam provar, contam com o efeito manada. Então, começarão a queimar o filme das pessoas nos grupos de WhatsApp. Prints ou fotos aleatórios serão tratados como comprovação de que aquela pessoa incorre em algum pecado mortal para o identitarismo. O próximo passo é aniquilar a pessoa usando o poder de se sentir ofendido.

Levar a sério quem defende frivolidades e até insanidades não será mais possível. Será necessário voltar a ouvir pessoas que têm problemas reais e soluções reais, não simbólicas.

A esquerda de pantufa passará a dizer que aquela pessoa não pode mais ser ouvida, levada a sério nem ter emprego porque ela ofende alguma minoria. Então, o crítico do governo passará a ser linchado virtualmente nas redes sociais abertas por um movimento coordenado desses influenciadores. As agências de publicidade que os representam vão pressionar as marcas para que demitam ou cortem laços com os críticos do governo, alegando ser por outra razão, alguma “fobia” que leva minorias a se matarem. Muita gente vai sair prejudicada, como sai todos os dias.

Ocorre que, de tanto ver isso, as pessoas cansaram. Todo movimento ilegítimo, superficial e incapaz de trazer soluções para as pessoas tem vida curta. Nem na internet é possível ter supremacia mais levando a sério os Che Guevaras de apartamento.

“A adoção pelo governo de Fernández de modismos de gênero juvenil apaziguou os influenciadores online, mas não conseguiu conquistar uma das jovens mais conhecidas da esquerda peronista: Mayra Arena, que vem das favelas urbanas da província, possui 135.001 seguidores no Facebook e se tornou influente em discussões argentinas sem abrir mão de seu trabalho diário como esteticista. Ela alcançou fama da noite para o dia depois de palestras TedX sobre o estigma em torno da pobreza na Argentina. Apesar de ser de pele clara, ela faz parte da população tradicionalmente chamada de negra (“negra”) em uma sociedade onde a cor permanece intercambiável com o estigma de classe”, conta o artigo.

A evolução tecnológica veio para ficar. Hoje, não é só a elite que está na internet, pobre também conquistou a banda larga. O parquinho de areia antialérgica está sendo desfeito pelos jovens pobres, que não se vêem representados por pautas superficiais, elitistas e excludentes. Por enquanto, parte da grande imprensa ainda não percebeu que as coisas estão mudando e, em breve, o império do identitarismo começará a ruir porque a internet também dá voz a gente pobre, que realmente sofre preconceito e quer mudanças.

É inevitável, dada a mudança que emerge das redes sociais e do avanço tecnológico, que em breve a imprensa seja atingida por esse fenômeno. Levar a sério quem defende frivolidades e até insanidades não será mais possível. Será necessário voltar a ouvir pessoas que têm problemas reais e soluções reais, não simbólicas.

Nesse ponto, o identitarismo será o veneno do político que o abraçar. A imagem dele estará vinculada a algo considerado tão tóxico como Chernobyl pela maioria das pessoas.

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