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Mão e mundo digital
Imagem ilustrativa.| Foto: Rawpixel.com / Freepik

Entre os casos que mais me revoltam no universo digital estão aqueles de ameaça contra criança por opinião dos pais ou de pressão pela demissão de um trabalhador. A teoria dos anjinhos que perpetram essas ações é a de que não podemos propagar o discurso de ódio porque ele terá, se tolerado, consequências nefastas. Isso é verdade. Falta é ter a noção de duas coisas: definir o que objetivamente é discurso de ódio no Brasil e avaliar se ele deve ser combatido com ações violentas no mundo real.

Você provavelmente conhece pessoas boas, honestas, mas que se juntam nessas hordas para ameaçar e pedir a cabeça de um empregado ao empregador. Existe uma ilusão de que esse fenômeno é ideológico, talvez pela forma como incorpora o discurso político. Só que ele não é. Aqui na Gazeta do Povo mesmo, já fui alvo de ataques em massa de patrulhas completamente divergentes ideologicamente. O finado “Escola sem Partido” chegou a fazer uma campanha de desassinaturas do jornal para que eu fosse demitida. Depois, virei alvo dos Sleeping Giants.

Estamos diante do desafio de compreender que o mundo mudou e agora a arquitetura das redes passa a ser um fator central dos efeitos das nossas ações.

Quando meu filho foi ameaçado de morte, os criminosos se diziam conservadores e de direita. Eu denunciei as ameaças e elas foram comemoradas efusivamente pelo movimento luloafetivo. Diziam coisas como “ninguém mandou ser filho de quem é”. Ele tinha 7 anos e todos os envolvidos sabiam disso.

Só por esses exemplos, já fica evidente que ninguém envolvido nesse tipo de coisa está defendendo uma ideologia ou um projeto político. Os líderes desse tipo de ataque emulam o discurso político-ideológico e, com isso, enganam muita gente. O que eles querem é ter um manto de proteção para agir de forma perversa e violenta. São pessoas que fazem qualquer coisa para poder ter prazer com o sofrimento alheio. Repetir um discurso político não é um sacrifício.

Nem todas as pessoas têm respeito humano pela gente e isso fica ainda mais nítido numa era de hiperconexão.

As pessoas que são enganadas pelos predadores estão diante de um truque poderoso. Para elas, o discurso ideológico é importantíssimo. Aliás, se organizaram em grupos justamente para defender determinados princípios relacionados à sua forma de ver o mundo. Elas não cogitam que isso seja supérfluo para alguém a ponto de defender ideologia em que não acredita porque tem outro objetivo. Assim são enganadas por predadores.

Elas imaginam, por exemplo, que um predador está agindo de forma agressiva porque é absolutamente necessário para defender algo de importância fundamental. Por isso, acabam minimizando a violência – verbal ou até física – e se juntando ao esforço de ataque. Fariam isso se soubessem que a causa não importa? Na maioria das vezes, é isso o que ocorre.

O predador está atrás de prazer ou engajamento, que hoje rende no mundo real dinheiro, prestígio e poder. Vai mirar em alguém que ele já quer prejudicar e inventar qualquer história, sempre apelando aos sentimentos e ideologia do grupo que diz representar. As pessoas do grupo vão se unir ao esforço de destruição de uma pessoa real em nome do prazer mórbido ou do dinheiro. Isso terá consequências reais. A maioria nem precisa ser convencida a fazer parte desse teatro perverso; será levada por uma crença muito comum.

Estamos diante do desafio de compreender que o mundo mudou e agora a arquitetura das redes passa a ser um fator central dos efeitos das nossas ações. É um mundo novo em que as ações se desenrolam de forma diferente e precisamos adaptar nossas percepções. A crença comum de que é possível dialogar ou responder algo em redes sociais é o que leva pessoas boas a integrar movimentos perversos de linchamento virtual e assassinato de reputação. Você nunca respondeu ninguém na rede, não se iluda. Você jamais dialogou numa rede social, isso não é possível. No entanto você, como eu, que temos mente analógica, temos a nítida sensação de que dialogamos e respondemos pessoas nas redes. É uma afirmação dura e pode parecer que estamos diante de algo assustador. Não estamos, é apenas a chegada do novo e nossa adaptação a essa nova arquitetura de relacionamentos.

Ninguém que esteja em volta está interessado no tema ou no que você está debatendo. As pessoas querem só o sangue e não tem consideração por você.

Quando você responde uma pessoa na rede, talvez imagine uma cena em que os dois estão debatendo. Pode ser em privado ou em público. Mas é um debate entre os dois e, se houver público, ele ouve as duas partes do argumento. Isso não existe na dinâmica de rede social porque os algoritmos mediam quem vai ver o quê. Pode ser que, depois de uma série de dez idas e vindas de perguntas e respostas, uma pessoa receba só uma delas. Pior, que venha com um comentário em cima distorcendo completamente o que você disse e dando razão ao seu oponente. Ela não vai ver todo o diálogo.

Ah, mas a pessoa para quem eu respondi vai ter de ouvir a resposta. Nem sempre. Ela pode simplesmente usar sua resposta para distorcer e assassinar sua reputação. Nem todas as pessoas têm respeito humano pela gente e isso fica ainda mais nítido numa era de hiperconexão, em que o número de vezes em que temos e presenciamos interações humanas cresceu exponencialmente. A ilusão de dialogar vai pelo mesmo caminho. A gente imagina que está num diálogo, seja civilizado ou não, ponderado ou na mais alta temperatura. A gente pode se imaginar debatendo ou até batendo boca com alguém, só os dois ou cercados por mais gente. Ocorre que estamos em outro cenário, numa arena romana.

Você pode, sem saber, estar participando de um apedrejamento coletivo.

Ninguém que esteja em volta está interessado no tema ou no que você está debatendo. As pessoas querem só o sangue e não tem consideração por você. Não porque elas sejam más, embora algumas efetivamente sejam. As redes sociais nos colocam em modo de manada ou multidão o tempo todo, sem que a gente perceba. Isso tem um efeito comprovado no nosso psicológico e, enquanto não nos conscientizamos, nos tornamos fantoches.

Se você estiver no meio de uma torcida organizada, já vai para lá sabendo que isso influencia suas atitudes. O mesmo ocorre cada vez que você entra numa rede social, você está agindo com essa mesma cabeça. Suas ações não serão desconectadas do todo. O que você faz no meio de uma torcida organizada raramente é, na prática, uma conduta que possa ser individualizada. Ela se relaciona sempre com um grupo, todo ele ou parte.

Se você viu que estão reclamando de uma pessoa, por exemplo, pode achar que está dando só sua opinião. Imagina que estão comentando algo sobre alguém, você ouve e comenta só com os seus amigos sua opinião. Normal. Isso não existe nas redes, lembra? Você pode, sem saber, estar participando de um apedrejamento coletivo. Como você viu uma postagem só e deu uma só resposta, imagina que isso seja a realidade. O alvo viu todas as postagens, a sua no meio, trazendo mais pessoas para o espetáculo.

Todos nós já estivemos dos dois lados desse teatro, como algoz e como vítima. O difícil é compreender do que se trata. Espero que este texto tenha trazido alguma luz ao nosso debate.

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