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Decisão do STF vai além da liberdade de expressão: entenda os impactos econômicos

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Alexandre de Moraes exibe vídeo do 8 de janeiro em julgamento sobre o Marco Civil da Internet no STF. (Foto: Antonio Augusto/STF)

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No Brasil de hoje, falar sobre liberdade de expressão virou quase um tabu. Justamente por isso é tão fácil reduzir discussões complexas a chavões ideológicos. A recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet foi tratada pela maior parte do público como uma questão exclusivamente ligada à censura. Mas ela vai muito além disso.

Estamos falando de uma mudança estrutural, de alta complexidade técnica e com consequências profundas não apenas para o debate público, mas para a economia digital, o comércio eletrônico, o marketing, a educação, o atendimento ao consumidor e até mesmo o uso da inteligência artificial.

A decisão do STF sobre o Marco Civil afeta tanto as grandes plataformas como Google, Facebook e X quanto pequenos negócios, fóruns de discussão, sistemas de avaliação de produtos, marketplaces, chatbots e plataformas de atendimento. O cenário que se desenha é de insegurança jurídica ampla, com risco real para a sustentabilidade de modelos de negócios digitais no Brasil.

Vou tomar a liberdade de reproduzir na íntegra a análise publicada por Ronaldo Lemos, advogado, professor de Direito da Informática da UERJ e um dos idealizadores do Marco Civil da Internet sobre a decisão do STF. O texto dele foi publicado nas redes sociais.

A pergunta que ainda não foi feita e que deveria ser central é: o que acontece com um país quando se elimina a segurança jurídica de toda a internet?

“Com a decisão do STF o Brasil passa a ter um regime de responsabilidade confuso. São 4 tipos de responsabilidade que o Supremo definiu. Como diz a oração da serenidade: ‘Dai-nos a sabedoria para distinguir’ qual será o regime aplicável em cada caso concreto.

A decisão [do STF] aplica-se tanto às Big Techs quanto a pequenos e médios provedores de aplicação. Do Google ao Reclame Aqui, passando por fóruns e caixas de comentários, todos estão abrangidos. Lembrando que no DSA europeu, o regime de responsabilização análogo só se aplica a plataformas com mais de 45 milhões de usuários mensais. Aqui será para tudo na internet.

Há muitas incertezas. Por exemplo, qual é o regime dos marketplaces? A decisão apenas diz que se aplicará o Código de Defesa do Consumidor, o que não esclarece nada.

A decisão abrange também ‘chatbots’, que dizem respeito à inteligência artificial. O que é estranho. Chatbots são tecnologias diferentes de redes sociais de conteúdo gerado por usuário. Isso cria ainda mais imprevisibilidade.

O STF diz que a decisão afasta a ‘responsabilidade objetiva’. No entanto, cria um regime de ‘presunção de responsabilidade’ que parece ser a mesma coisa. Quais as diferenças? Não está claro.

A decisão pode levar à remoção massiva de conteúdos na internet, bastando notificação extrajudicial. Há obrigação de remover todos os conteúdos iguais. E se o conteúdo estiver sendo postado para ser criticado, o que é legítimo. Vai ser removido também?

No regime anterior, se alguém reclamava de um conteúdo ele ficava no ar até a decisão judicial. Era um regime de ‘na dúvida, pró liberdade de expressão’. Agora isso se inverte em 3 dos 4 regimes. O conteúdo será primeiro tirado do ar. Caberá a quem fez o post acionar o judiciário para colocá-lo de volta. O regime é ‘na dúvida, pró remoção’.

Minha preocupação é que uma intervenção dessa envergadura requer uma lei. Não sou eu que digo isso, mas o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, que é um tratado de direitos humanos do qual o Brasil é signatário e tem força supralegal no país desde 1992. Ele diz claramente: ‘O exercício do direito da liberdade de expressão poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei’.

Vai ser difícil sustentar, à luz do Pacto, que as mudanças feitas pelo STF foram feitas ‘em lei’.

Pontos acertados: manutenção das questões sobre honra (calúnia, injúria etc.) sob o artigo 19. E a expansão da lista do artigo 21, com remoção sem ordem judicial, para questões graves e objetivas, como proteção das crianças e adolescentes, e terrorismo. Mesmo sobre esses, pode prevalecer o entendimento de que seria necessária uma lei para que as mudanças fossem feitas.

A intervenção do STF é como alguém que vai operar o coração e, ao sair da cirurgia, descobre que foi operado também no pâncreas, no fígado, nas pernas e no cérebro. O STF foi chamado para resolver um problema específico e passou a faca geral. (grifo meu)

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Um dos exemplos mais emblemáticos da insegurança criada pela decisão está na menção a “chatbots”. A decisão do STF não especifica com clareza o que está sendo incluído nesse termo. Estamos falando de quê, exatamente? De bots que disparam propaganda em massa? De robôs utilizados em campanhas de assédio digital nas redes sociais? Ou de sistemas legítimos de atendimento automatizado ao cliente, como os usados por empresas de serviços e instituições públicas?

Quando a decisão do STF menciona os bots, deixa em aberto se se referia a bots de atendimento, robôs de disparo em massa ou ferramentas de manipulação. Essa indefinição conceitual, sem distinções técnicas, cria um terreno fértil para interpretações.

Essa decisão do STF não afeta apenas quem publica opiniões políticas nas redes sociais. Ela ameaça diretamente a liberdade econômica e a previsibilidade jurídica de setores inteiros. Plataformas como o Mercado Livre, sites como o Reclame Aqui, empresas que usam bots para atendimento automático, startups que operam com inteligência artificial, pequenos sites de avaliação de produtos, canais de venda direta, todos passam a operar sob um risco jurídico que não existia até então. Basta uma notificação extrajudicial para que conteúdos saiam do ar, sem mediação do Judiciário, mesmo que sejam legítimos. A autocensura e o instinto de preservação dos negócios terão um peso enorme no que se desenha a partir de agora.

A pergunta que ainda não foi feita e que deveria ser central é: o que acontece com um país quando se elimina a segurança jurídica de toda a internet? O que acontece quando pequenos negócios, inovadores ou não, passam a depender do entendimento casuístico e variável de quatro modelos diferentes de responsabilidade?

O real impacto da decisão do STF só começará a ser sentido quando os primeiros casos concretos forem julgados. Só então saberemos se a jurisprudência consolidada nos últimos anos será substituída por um ambiente instável, em que ninguém sabe ao certo o que pode ou não publicar, vender, automatizar ou programar.

Até lá, ficamos diante de um alerta gravíssimo: o Brasil acaba de reescrever as regras da internet sem que o Congresso tenha participado disso e sem que o país esteja pronto para lidar com as consequências. Aliás, sem que esteja pronto sequer para querer entender as consequências.

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