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Julgamento do STF não é só sobre redes: afeta marketplaces, aplicativos de transporte e outros sites

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Sessão do STF que continuou julgamento sobre o Marco Civil da Internet. (Foto: Fellipe Sampaio/STF)

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O Supremo Tribunal Federal está prestes a tomar uma decisão que pode remodelar completamente o ecossistema da internet brasileira. O julgamento da trata da validade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, uma cláusula que garante atualmente que plataformas digitais só possam ser responsabilizadas por conteúdos de terceiros após o descumprimento de uma ordem judicial específica para remoção. O que quase ninguém está atentando é que, se o STF confirmar a derrubada desse dispositivo, o impacto não se limitará a redes sociais. Ele atingirá marketplaces, sites de busca, aplicativos de transporte e entrega, fóruns e todos os serviços baseados na mediação de conteúdo de usuários.

A decisão é histórica porque coloca em risco um dos pilares mais importantes da arquitetura jurídica da internet no Brasil. O artigo 19 do Marco Civil foi criado para assegurar que qualquer tipo de interferência sobre conteúdo na rede passasse por uma instância judicial, garantindo o contraditório e o devido processo legal. Isso impediu, por exemplo, o bloqueio arbitrário de serviços como Amazon e Mercado Livre e a responsabilização injusta de plataformas por conteúdos alheios.

O STF pode estar inaugurando uma nova era: a da internet por decreto, sem juiz, sem contraditório e sem defesa. Uma internet onde bastará uma notificação para calar, censurar ou desativar

Boa parte do debate público tem tratado essa discussão como se dissesse respeito apenas às redes sociais, aos influenciadores digitais e ao discurso político. Mas a liberdade de expressão vai muito além disso: ela também abrange críticas a empresas, avaliações de serviço, manifestações de consumidores e denúncias feitas por cidadãos comuns. A decisão do STF sobre o Marco Civil tem o potencial de sufocar essas manifestações, ao permitir que sejam removidas sem contraditório, apenas com base em notificações extrajudiciais.

Com a remoção do artigo 19, qualquer notificação, inclusive de origem privada ou administrativa, poderá servir como base para exigir a retirada imediata de conteúdos. A consequência é a abertura de um cenário de censura ampla e imprevisível, onde plataformas e serviços se verão obrigados a eliminar conteúdos preventivamente, sem julgamento, com medo de futuras responsabilizações. E não estamos falando apenas de política, mas também, por exemplo, de reclamações de consumidores.

"O Marco Civil da Internet é uma das leis mais importantes já feitas sobre o funcionamento da rede. Ele se tornou exemplo mundial. A exigência de decisão judicial para remoção de conteúdo garante um mínimo de contraditório e due process na internet. Sem isso, qualquer disputa vira briga de faca no escuro", explica Thiago Ayub, especialista em infraestrutura da internet, operador do protocolo BGP e atuante na governança de redes há mais de 15 anos.

Ayub destaca que o risco maior está na banalização das notificações, inclusive por litigância de má-fé: "Plataformas podem ser notificadas por conteúdos que não são ilegais, apenas por oportunismo ou tentativa de calar críticas. Como a notificação passa a ter peso de obrigação, muitos conteúdos acabarão removidos por medo, mesmo quando legítimos".

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As implicações práticas são imensas. Marketplaces como Mercado Livre, Amazon e OLX já enfrentaram no passado tentativas da Anatel de retirar seus serviços do ar por venderem produtos não homologados. Há fornecedores nessas plataformas que vendem artigos eletrônicos não homologados pela Anatel. Hoje isso é combatido com apreensão física das cargas pelos órgãos policiais competentes. A Anatel entende que pode fazer esse combate também por meio do bloqueio de todo o marketplace, inclusive de todas as lojas que não têm nada a ver com isso e vendem produtos legalizados.

Tais pedidos foram barrados por decisões judiciais com base no artigo 19 do Marco Civil, que exigia judicialização antes da remoção. Sem ele, abre-se caminho para que agências reguladoras ou até mesmo empresas concorrentes possam solicitar a remoção de plataformas inteiras com base em simples notificações administrativas.

"Hoje já existe uma infraestrutura automatizada na Anatel com acesso remoto aos servidores e roteadores centrais das operadoras. Ela pode, tecnicamente, derrubar sites de forma centralizada. O que impedia isso era o artigo 19. Agora que esse dispositivo caiu, o que está em jogo é o controle total da rede pelas agências estatais", alerta Ayub.

O julgamento tem sido acompanhado de perto por operadores de rede, advogados, empresas e pesquisadores do ecossistema digital. Há um entendimento majoritário de que a internet brasileira pode retroceder duas décadas se esse precedente for consolidado. A autonomia da esfera judicial seria substituída por um poder discricionário de notificação, em que qualquer entidade com influência ou poder econômico pode suprimir informações, pressionar empresas e desestruturar negócios.

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Além disso, essa decisão abre margem para impactos econômicos sérios. Empresas que atuam em áreas cinzentas da moderação de conteúdo, como redes de apoio ao consumidor, plataformas de review e serviços de reputação online, poderão ser alvos constantes de notificações, o que inviabilizaria sua operação. Aplicativos de transporte e entrega podem ser prejudicados por acusações não verificadas de usuários ou concorrentes, gerando bloqueios preventivos.

A população em geral, que se tornou cada vez mais dependente de serviços digitais para atividades cotidianas, será diretamente afetada. Um sistema que hoje oferece segurança jurídica e equilíbrio pode se tornar imprevisível e sujeito à influência política, econômica ou ideológica.

Se mantida, essa decisão derrubando o artigo 19 do Marco Civil da Internet representa uma ruptura silenciosa e técnica, mas com profundas repercussões sobre a liberdade de expressão, o funcionamento do mercado digital e a governança democrática da internet no Brasil. O STF pode estar inaugurando uma nova era: a da internet por decreto, sem juiz, sem contraditório e sem defesa. Uma internet onde bastará uma notificação para calar, censurar ou desativar.

O grave é que, num país altamente polarizado, os olhos estão voltados exclusivamente para redes sociais e debate político. Inclusive nos votos dos ministros do STF e nas abordagens de boa parte da imprensa essa simplificação prevalece. O ministro André Mendonça citou a questão dos consumidores, lendo um parecer do IDEC, Instituto de Defesa de Consumidores. É um dos pouquíssimos a perceber a extensão desse julgamento.

É urgente que a sociedade perceba a extensão desse debate sobre o Marco Civil. Vai muito além de poder ou não falar o que quer nas redes sociais.

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