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Imagem ilustrativa.| Foto: Unsplash

Esta semana finalmente saiu do ar o site Kiwi Farms. Se você leva uma vida normal e não é da área digital, provavelmente nunca ouviu falar. Dê graças a Deus. Era algo com o mesmo espírito de uma ideia de dez anos atrás retratada no documentário O Homem Mais Odiado da Internet. Ali a gente vê que não há uma linha fina entre liberdade de expressão e perversidade, há um muro. Vou falar um pouco dessa história para deixar mais clara a importância do caso Kiwi Farms e, sobretudo, a forma como se deu o fim desse site.

O documentário está na Netflix, mas não é uma obra de lacração ou politicamente correto. Aconselho sobretudo mães e pais a verem para conversar com seus filhos sobre comportamento online. Ele mostra como a união da família e a confiança recíproca entre pais e filhos é determinante para sair de uma postura de medo do mundo digital para o domínio dele. Também resgata a nossa esperança na capacidade de ação das pessoas firmes aos seus princípios e valores morais. Um militar aposentado tem papel fundamental para acabar com a tortura psicológica de pessoas que ele nem conhecia.

Em três episódios, é contada a história de Hunter Moore, um jovem sem princípios e escrúpulos que vivia basicamente glorificando as drogas e a promiscuidade sexual. Além disso, ele formou uma espécie de culto à perseguição perversa. Ele cria um site para postar nudes das mulheres com quem teve encontros, obviamente sem a autorização delas. Então, começa a incentivar seus seguidores que façam o mesmo.

Houve diversos casos de suicídios nos Estados Unidos ocorridos durante perseguições orquestradas pelo Kiwi Farms. As mortes são comemoradas de forma efusiva pelos grupos que conseguem levar alguém ao suicídio

A postagem em si já seria um pesadelo para muitas pessoas, mas ela vem sempre acompanhada dos links para todas as mídias sociais da pessoa e, algumas vezes, endereço e telefone. Ele forma uma espécie de culto em torno da tortura psicológica dessas pessoas, um grupo que comemora com vigor o sofrimento delas e se junta de maneira efusiva para celebrar a personalidade de Hunter Moore. Ocorre que, ali no meio, há moças expostas que jamais permitiram que fosse tirado um nude e jamais enviaram um nude. Tiraram fotos para ver alguma parte do corpo e até para questões médicas e estéticas.

Descobrem então que, além de receber fotos de pessoas perversas dispostas a expor outras, ele contratou um hacker para roubar fotos de servidores pessoais. A vida de dezenas de pessoas é virada do avesso com as postagens. Elas são seguidas de bombardeios de mensagens pelas redes sociais, telefonemas e entrega de encomendas macabras. Os seguidores idolatram Hunter Moore e o “movimento” que eles formaram. Além de expor as pessoas, também faziam falsas denúncias à polícia. Muitas eram acordadas por viaturas, falsamente denunciada por crimes, mas expostas para todo mundo.

Saber de histórias assim dá a muita gente a vontade de devolver na mesma moeda. Nesse caso, não deu certo. Quanto mais perseguiam e expunham Hunter Moore, mais famoso e forte ele ficava. Quem se alimenta de ódio e perversidade é ele, não quem o combate. Ele acabou na cadeia e o movimento foi dissolvido graças à ação de gente séria, sensata e que resistiu à tentação de pisotear os próprios princípios ao se ver lutando contra quem não respeita nada nem ninguém.

O fórum Kiwi Farms era uma espécie de fandom do Hunter Moore mais difuso e com tecnologia mais avançada. O foco era exclusivamente a perseguição de diversas pessoas e não somente pela exposição de nudes. As preferências por vítimas mudavam de acordo com os grupos. Era uma curva de rio de pessoas cruéis de todas as ideologias.

Anos atrás, a preferência era por mulheres do universo gamer. Depois mudou para pessoas trans e autistas. E então grupos trans começaram a perseguir mulheres de direita, como a deputada Marjorie Taylor-Greene, apontada por muitos como extrema-direita. Tudo isso ao mesmo tempo.

Houve diversos casos de suicídios nos Estados Unidos ocorridos durante perseguições orquestradas pelo Kiwi Farms. As mortes são comemoradas de forma efusiva pelos grupos que conseguem levar alguém ao suicídio. As tentativas legais e de regulamentação empacaram. Todo o sistema jurídico é feito para que cada caso seja tratado de forma separada e as responsabilidades sejam atribuídas a cada indivíduo.

Não há dúvidas de que o sistema Kiwi Farms fomentava todo esse ciclo. A questão é como regulamentar. Quais seriam os marcos que levariam a determinar de forma objetiva que um empreendimento está fomentando esses grupos? Quem determina e mede esses marcos?

O começo do fim foi no último 5 de agosto. A ativista canadense Clara Sorrenti foi acordada por uma ação armada da polícia contra ela. Um grupo organizado no Kiwi Farms havia feito uma denúncia falsa muito elaborada. Eles se comunicaram com a Câmara Municipal de London, em Ontario. Disseram que a ativista havia assassinado a própria mãe e estava indo para a casa legislativa armada com o objetivo de matar todas as pessoas que não fossem trans.

O golpe foi tão crível que a polícia foi imediatamente acionada e deslocada para a casa da ativista. Esse tipo de ação, que ocorreu também com a deputada de direita, é chamada de “swatting” na gíria dos perseguidores. A ativista resolveu apelar à empresa que hospedava o Kiwi Farms. Os organizadores do fórum obviamente não tinham princípios nem valores morais, mas a empresa que os hospeda é um negócio que também trabalha com diversas outras empresas.

Uma coisa é sua ação diante de quem efetivamente promoveu ataques homicidas, a outra é conseguir prever quem potencialmente cometeria esses ataques ou incentivaria suicídios com sucesso.

A Cloudflare tentou defender seu negócio. Obviamente era uma denúncia justa, mas como eles traçariam a linha entre pisotear a liberdade de expressão e efetivamente diferenciar os criminosos? O movimento acabou unindo todos os espectros políticos, da extrema-esquerda à extrema-direita, passando por direita, esquerda e centro. A perversidade era o motor do Kiwi Farms e isso estava claro. A deputada Marjorie Taylor-Green, que tem duríssimos embates com a militância trans, resolveu se unir à campanha. Ela também havia sido vítima de “swatting”.

O CEO da Cloudfare, Matthew Prince, emitiu um comunicado em 31 de agosto. Reiterou que a empresa tem normas claras de punição contra abusos, mas tinha dificuldades em definir regras claras para a sua atuação e os seus limites. “Assim como a companhia telefônica não encerra sua linha se você diz coisas horríveis, racistas, preconceituosas, concluímos, em consulta com políticos, formuladores de políticas e especialistas, que desligar os serviços porque achamos que o que você publica é desprezível é a política errada”, disse Matthew Prince.

A empresa já havia deixado de prestar serviços a sites que promoveram assassinos e terroristas, envolvidos nos casos de Charlottesville, El Paso e no ataque a duas mesquitas na Nova Zelândia. Uma coisa é sua ação diante de quem efetivamente promoveu ataques homicidas, a outra é conseguir prever quem potencialmente cometeria esses ataques ou incentivaria suicídios com sucesso. Ocorre que os usuários da Kiwi Farms escalaram na violência contra a ativista, enviando ameaças e encomendas macabras. A política a realocou para um endereço de testemunhas protegidas.

Ela postou uma foto. Os usuários da Kiwi Farms se uniram para descobrir de qual hotel era o lençol que aparecia na foto do gato que ela postou. Então, hackearam a conta de Uber Eats dela e mandaram milhares de dólares em comida para o endereço. Depois começaram as ameaças de morte, tanto contra ela quanto contra a família. A maioria feita nas caixas postais dos celulares ou por mensagens de voz vindas de números não rastreáveis.

Existem grupos que só causam problemas. Antes que tenhamos encontrado uma solução na área de regulamentação, a economia encontrou.

A ativista decidiu sair do país. Foi embora do Canadá para a Irlanda do Norte. Mais uma vez os usuários da Kiwi Farms localizaram o endereço dela e começaram uma nova rodada de perseguições e ameaças. Foi então que a Cloudflare decidiu procurar as autoridades policiais. Segundo o CEO, “uma decisão extraordinária para tomarmos e, dado o papel da Cloudflare como provedor de infraestrutura de internet, uma decisão perigosa com a qual não nos sentimos confortáveis”.

Embora nesse caso específico não tenha havido um episódio de crime de sangue, o que levou à recusa em prover estrutura de internet para outros grupos, a Cloudflare considerou que era o momento de agir. “A retórica no site da Kiwi Farms e as ameaças específicas e direcionadas aumentaram nas últimas 48 horas a ponto de acreditarmos que há uma emergência sem precedentes e uma ameaça imediata à vida humana, diferentemente do que vimos anteriormente na Kiwi Farms ou em qualquer outro cliente antes. ”, explicou Matthew Prince.

O CEO da Cloudflare ponderou: “Estamos cientes e preocupados que nossa ação possa apenas atiçar as chamas desta emergência… os indivíduos que usaram o local para aterrorizar cada vez mais se sentirão ainda mais isolados e atacados e poderão atacar ainda mais. Existe um risco real de que, ao tomar essa ação hoje, possamos ter aumentado ainda mais a emergência”.

A Kiwi Farms procurou outros provedores. Foi negada até por provedores russos completamente blindados juridicamente dos temas norte-americanos. Os donos da Kiwi Farms já anunciaram que o fórum jamais poderá ser algo estável novamente, ninguém quer hospedar.

Aparentemente, uma linha clara foi desenhada. Existem grupos que só causam problemas. Antes que tenhamos encontrado uma solução na área de regulamentação, a economia encontrou.

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