Dia desses, o presidente Lula disse que era “armação do Moro” a investigação da Polícia Federal mostrando que ele, a família e promotores foram ameaçados de morte pelo PCC. Falou rindo, debochou. Imediatamente entraram em cena os tradutores de político, categoria profissional de sucesso na era das redes sociais.
Como o meio político está cada vez mais inflamado, os populistas jogam para a plateia. A economia da atenção requer exageros no nível de absurdo, virulência e crueldade. Isso realmente dá popularidade e deixa os mais radicais – e mais fiéis – muito contentes. Só que a maioria acha no mínimo desconfortável. É daí que surgem os tradutores de político.
Nas redes sociais não há diálogo, estamos em movimento de manada o tempo todo, na briga de um grupo contra outro.
Atuam, na verdade, como eu já fiz durante uns bons meses. Quando meu filho era bebê e começava a falar, só eu entendia o que ele dizia. Se você é mãe e está lendo, provavelmente teve a mesma experiência. Nós entendemos os balbucios e as outras pessoas não. Por isso, eu traduzia meu filho para familiares e amigos. Hoje temos pessoas adultas que fazem isso por políticos adultos.
Claro que sempre teve capacho e bajulador de político se metendo a fazer essas coisas. A diferença agora é o volume e o descolamento da realidade. Nas redes sociais não há diálogo, estamos em movimento de manada o tempo todo, na briga de um grupo contra outro. Se o político de quem meu grupo não gosta falou algo, é um esporte entre nós apontar o absurdo. Já se o político de quem gostamos falou algo, vamos primeiro dizer que o adversário faz o mesmo e depois investir numa tradução de político que doure a pílula.
Qual o jeito para combinar a negação da realidade nas manadas de redes sociais com a necessidade de ser um cidadão atuante? Colocar os humoristas no lugar dos políticos.
Muita gente acha que esses grupos vivem uma realidade paralela. Pela minha experiência, as pessoas sabem que estão mentindo, que o político disse o que disse mesmo e ponto final. Ocorre que o mais importante é o grupo, aquela união. Em nome dele falarão qualquer coisa e passarão adiante as teorias mais absurdas. Ocorre que esses grupos se uniram em primeiro lugar pelo que acreditávamos ser algo interessante, o crescimento do interesse do brasileiro por política. São pessoas que querem se expressar politicamente, defender causas e promover mudanças.
Qual o jeito para combinar a negação da realidade nas manadas de redes sociais com a necessidade de ser um cidadão atuante? Colocar os humoristas no lugar dos políticos. Se o político fala, é brincadeirinha. Se o humorista fala, é muito sério e precisamos tomar providências. Parece ridículo e é ridículo, mas isso tem acontecido com muita frequência. Percebemos que a atuação política de um grupo desanda quando ele começa a levar piada a sério e tratar como brincadeira o que as autoridades dizem.
Não é um fenômeno brasileiro. Também importamos de forma acrítica dos Estados Unidos esse vício de cancelar humoristas praticado pelo identitarismo ou movimento woke. O professor de filosofia Ben Burgis escreveu um livro muito interessante sobre isso, Cancelling Comedians While the World Burns (“Cancelando comediantes enquanto o mundo pega fogo”).
É exatamente o mesmo fenômeno que vemos por aqui. Para deixar bem claro, não trago à discussão o comportamento pessoal de humoristas ou o que eles fazem nas redes sociais. Fico só com o palco, que é arte e está sujeito a um tipo de escrutínio completamente diferente. Se um humorista conta no palco uma piada considerada ofensiva, alguém pode cortar o trecho do vídeo, jogar na internet e daí surge até deputado para processar. O humorista, que era amador, acaba demitido do emprego real.
Se o político fala, é brincadeirinha. Se o humorista fala, é muito sério e precisamos tomar providências. Parece ridículo e é ridículo, mas isso tem acontecido com muita frequência
Tudo o que humoristas como Léo Lins, Danilo Gentilli e Maurício Meirelles dizem é muito mais escrutinado do que aquilo vindo da boca de quem dita os rumos da nação. E aqui há ainda uma inversão total do princípio civilizatório da boa-fé, em que interpretamos o que o outro diz supondo que ele está de boa fé, tentamos entender o que foi dito e o contexto. Tudo o que esses humoristas disserem será sempre lido da pior forma possível e, se não for suficiente, será distorcido.
Aqui chegamos a um ponto importante trazido por Angel Eduardo, senior writer da FIRE, em um de seus artigos mais recentes: como decidir o que é ou não ofensivo? A lacrolândia geralmente aplica a saída retórica “mas todo mundo sabe” ou infere que, se você não achou ofensivo também, você é preconceituoso e precisa ser cancelado. Por isso muita gente, inclusive jornalistas, acaba calando.
Quanto mais cerceamos humor e arte em nome da proteção de pessoas, mais produzimos gente violenta e autoritária.
Atualmente, editoras e projetos de inclusão contratam nos Estados Unidos os “sensivity readers”, leitores de sensibilidades. Eles é que são encarregados de achar nas obras alheias os pontos que devem ser mudados para reescrever a história de um jeito mais sensível.
Angel Eduardo propõe alguns questionamentos a partir desse fato: “Como qualquer leitor de sensibilidade pode saber o que você ou eu podemos achar ofensivo? As “sensibilidades” de quem estão realmente sendo consideradas e como são determinadas? E se as preferências de dois grupos diferentes, ou de várias pessoas dentro de um grupo, estiverem em conflito? Quem determina qual ofensa tem prioridade? E aqueles que se ofendem com as próprias edições (que suprimem ofensas)?”.
Pois é, não há respostas. Aliás, as respostas são ainda mais difíceis porque uma mesma fala é altamente ofensiva na boca de alguns, os comediantes, e só uma brincadeirinha na boca de outros, os políticos. Quanto mais cerceamos humor e arte em nome da proteção de pessoas, mais produzimos gente violenta e autoritária. Há séculos o ser humano lida com as próprias mazelas e conflitos por meio da arte e do humor. Ali são expostas as chagas da nossa alma e nossas incongruências, mas de forma que possamos rir de nós mesmos, nos ver de fora, nos emocionar, nos compreender e expandir os horizontes.
Nossos Che Guevaras de apartamento não são muito diferentes dos falsos moralistas de conto de Nelson Rodrigues ou das antigas bedéis de colégio de freira. O que os une é a busca virulenta por pureza, o prazer em apontar os erros alheios e um moralismo de quinta categoria.
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