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Já virou lugar comum. Fala-se em filme de mafiosos, pensa-se em O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972). Alguém cita Sergio Leone, vem à cabeça os westerns (ou faroestes, no jargão brasileiro). Uma pena, já que o gênero de gângsteres no cinema não se resume ao clássico de Francis Ford Coppola e Sergio Leone está longe de ter se restringido somente aos bang-bangs entre xerifes e criminosos a cavalos.

Juntando alguns dos melhores elementos destes dois mundos, chegamos a Era Uma Vez na América (Once Upon a Time in America, 1984), o último filme dirigido por Sergio Leone, que morreu cinco anos depois deixando uma filmografia enxuta, mas inspiradora. Apesar da semelhança do título com um de seus filmes mais famosos, Era Uma Vez no Oeste (Once Upon a Time in the West), o épico de gânsteres de Leone é uma produção muito mais sóbria e até amarga. Na longa produção – são quase quatro horas de duração – acompanhamos a saga de um grupo de amigos que ganham a vida como contrabandistas de bebidas durante a Lei Seca nos Estados Unidos, no início do século 20.

Era Uma Vez na América: o retrato de uma época e de vidas marcadas pelo crime.

O cenário muda drasticamente, dos descampados e vilas dos westerns para os subúrbios nova-iorquinos, mas outras características da filmografia de Leone permanecem evidentes, como a trilha marcante de Enio Morricone e as longas sequências contemplativas, com poucos diálogos. De fato, Era Uma Vez na América soa como um épico silencioso, centrado não nas palavras, mas nas boas atuações e expressões de Robert De Niro e James Woods, os dois amigos que são o ponto focal da trama.

De Niro é David Aaronson, apelidado de Noodles. É o cara quieto da turma, pé no chão, mas capaz de atos de extrema violência. Já Woods é Maximilian Bercovicz, vulgo Max, o esquentadinho com sonhos de grandeza. Ao longo do filme, acompanhamos as idas e vindas dos dois durante três gerações, na adolescência, na vida adulta e na velhice – apesar de Max ter morrido no auge de sua carreira, em uma ação indiretamente orquestrada pelo melhor amigo.

O roteiro é não-linear e são essas “quebras” na história, ora no passado, ora no presente, que não tornam o filme tão cansativo. Até porque houve um trabalho interessante e inspirado nos cortes de uma época para outra, que não são secos – é como se, num passe de mágica, um acontecimento do passado se refletisse no futuro, e vice-versa. Em um momento vemos o velho e amargo Noodles retirando uma placa de uma parede em uma despensa, para, no instante seguinte, observamos o pequeno Noodles espiando uma bela garota pelo buraco do mesmo ambiente.

E é durante as quatro horas de filme que descobrimos as motivações, arrependimentos e amarguras destes dois amigos, cuja relação só é inteiramente desvendada nos instantes finais de projeção. Aqui, acontece algo um tanto quanto diferente dos filmes de gângsteres usuais. Leone não pinta seus protagonistas como anti-heróis, ou criminosos simpáticos capazes de despertar a torcida do espectador. Por mais que reconheçamos Don Corleone, Tony Montana e John Dillinger como criminosos, também o adoramos e reverenciamos. Já Noodles e Max levam o “banditismo” a outro nível, a ponto de trocar bebês em uma maternidade ou chantagear policiais quando ainda nem tinham barba para fazer. Em uma das cenas mais fortes do filme, Noodles estupra e agride no banco de trás do carro a mulher por quem era apaixonado desde a infância – apenas porque ela feriu seus sentimentos, recusando o convite para ser sua esposa.

Max e Noodles, os dois amigos que cresceram nas ruas batendo carteiras.

Por isto mesmo Era Uma Vez na América é isento de comparações com outras pérolas do gênero, como a onipresente trilogia O Poderoso Chefão. Não há aqui glamourizações ou perseguições velozes entre polícia e bandidos. Os mafiosos nova-iorquinos retratados por Leone são seus próprios inimigos e, ao invés de morrerem heroicamente em combate, precisam envelhecer e conviver com pecados que nunca serão perdoados.

O desfecho do filme é um caso à parte. Não vale aqui dar detalhes para não estragar a surpresa. Há quem ache a reviravolta final um tanto quanto inverossímil, digna de novelas mexicanas. Já outros ficam espantados no bom sentido, até pela atitude tomada por Noodles, capaz de o redimir – em parte. De qualquer maneira, todo o percurso até este final vale ser apreciado como a herança final da carreira memorável de Leone. Em tempos de explosões e tiroteios que pipocam a cada dez minutos no cinema, nada melhor do que parar para contemplar um filme que não tem pressa alguma.

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