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Bolsonaro diz que governo é alvo de perseguições
Bolsonaro discursa no evento evangélico The Send Brasil, no estádio Mané Garrincha, em Brasília.| Foto: Reprodução/Facebook

Pensamos ser este espaço uma oportunidade de dar voz para atores da sociedade que são referência em suas comunidades e campos de influência, mas que talvez não tenham oportunidades de falar com públicos não diretamente ligados ao fenômeno religioso. Por exemplo: fala-se muito em “evangélicos”. Caricaturas são feitas e preconceitos verbalizados em prosa e verso, num espectro bem conhecido nesta dialética maluca que se estabeleceu no Brasil.

Urge, especialmente em momentos delicados como o que estamos vivendo, com sensibilidades à flor da pele, que possamos nos ater aos fatos e realidades, de forma a mantermos unida a sociedade, e entendermos um pouco melhor as diferentes visões de mundo tanto na dimensão da espiritualidade quanto na forma como se veem questões éticas e de comportamento social. Afinal, todos sabemos que o Estado é laico (e, no Brasil, colaborativo), mas a sociedade é profundamente espiritualizada; e quem não é tem na sua opção de não professar uma fé a resposta que lhe satisfaz quanto às suas questões existenciais. E viva a liberdade!

Assim sendo, buscamos inaugurar uma série de entrevistas com lideranças em várias áreas ligadas a confissões religiosas. Começamos pelo Rev. Prof. Franklin Ferreira, uma autoridade brasileira em teologia reformada (confissão ligada ao movimento histórico da Reforma Protestante que tem uma de suas origens no reformador francês João Calvino), diretor do Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos (SP), e consultor acadêmico de Edições Vida Nova. Ele é autor de obras de referência em sua área teológica – a Teologia Sistemática – e também tem se dedicado a muitos temas de Teologia Pública. Sua obra inaugural nesta área é o livro Contra a Idolatria do Estado: o papel do cristão na política, de 2016. Por conta de seu engajamento de educação da igreja evangélica brasileira nesses assuntos, também serve como secretário do conselho deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR).

Acompanhe suas interessantes reflexões sobre temas atuais e de necessária compreensão para se entender o fenômeno dos “evangélicos” no Brasil, este grupo crescente e que, em 2020, bate a casa de 30% da população brasileira.

Qual a visão do evangelicalismo brasileiro sobre a situação atual que atravessamos com isolamento, medo, insegurança e temor pelo futuro diante da pandemia da Covid-19?

Penso ser importante definir o que significa “evangelicalismo brasileiro”. Este engloba no Brasil as igrejas históricas, conectadas com a Reforma Protestante europeia do século 16, como as igrejas luteranas e as igrejas presbiterianas; as denominações que surgiram nos avivamentos dos séculos 17 e seguinte no Reino Unido e nos Estados Unidos, tais como congregacionais, batistas e metodistas; as igrejas pentecostais, surgidas nos Estados Unidos no começo do século 20, como as Assembleias de Deus; e as diversas igrejas de cura divina, carismáticas e neopentecostais, surgidas na segunda metade do século passado.

Como o evangelicalismo brasileiro é multifacetado, as respostas à crise da pandemia também refletiram a diversidade presente entre os cristãos brasileiros. Algumas igrejas reagiram rapidamente, cancelando seus cultos públicos e reuniões já no domingo, 15 de março. Outras igrejas mantiveram seus cultos públicos até o domingo, 22 de março. Posso citar como exemplo pessoal: a igreja da qual sou um dos pastores tomou a decisão de suspender seus cultos públicos, que são realizados num teatro de um importante shopping da cidade de São José dos Campos, na sexta-feira, 13 de março. O seminário do qual sou diretor geral, o Seminário Martin Bucer, decidiu cancelar as aulas presenciais na quinta-feira, 12 de março, migrando para aulas com transmissão ao vivo já na semana seguinte – isto antes de qualquer orientação oferecida por autoridades municipais e estaduais em São Paulo.

"Não se pode alegar que está ocorrendo alguma perseguição religiosa, pois não é por causa de restrições estatais à mensagem cristã que autoridades estão recomendando o fechamento de templos religiosos"

Outras igrejas entenderam que as portas dos templos deveriam permanecer abertas, independentemente de qualquer consideração ou mesmo orientação dada pelo Estado – e as motivações para tal foram várias: uma suposta fidelidade à fé cristã, como se a igreja dependesse de templos; anseio de servir os necessitados; desconfiança do Estado etc.

Tendo alguns assumido esta posição, governadores e prefeitos foram provocados a ordenar o fechamento das igrejas, o que gerou outra situação, o conflito com o Estado, na pessoa de prefeitos e governadores. E, nesse caso, não se pode alegar que está ocorrendo alguma perseguição religiosa, pois não é por causa de restrições estatais à mensagem cristã que autoridades estão recomendando o fechamento de templos religiosos, mas por causa da crise gerada pelo coronavírus. Um exemplo triste vem da França, onde uma reunião de carismáticos da Mission du Plein Évangile – Église Porte Ouverte Chrétienne foi acusada de disseminar o coronavírus. Penso que clérigos aqui no Brasil não desejarão tal estigma sobre si e suas igrejas.

Nessa situação, o que percebo é que uma parcela dos cristãos evangélicos mantém apoio irrestrito ao presidente Jair Bolsonaro; outra parcela é crítica ao governo e a forma como este tem gerido a crise de pandemia; e, me parece, a maior parcela dos cristãos está temerosa do que está diante de nós: uma crise na área de saúde e outra na área econômica.

Cristãos tiram força e coragem de sua fé em Jesus como o único Senhor e Messias. Mas também estão expostos às mesmas tensões e lutas como todos. Então, cristãos se debatem com os temores ligados à pandemia, mas, na medida em que aumenta o tempo de isolamento social, começam as preocupações com o futuro: haverá um emprego depois dessa crise? Como pessoas sem trabalho conseguirão comprar comida? Como o comércio pode ficar fechado tanto tempo e sobreviver? E aqueles que serão mais duramente atingidos tanto pela pandemia de coronavírus como pela crise econômica serão aqueles das classes sociais mais pobres. E muitos desses são autônomos ou trabalhadores informais. Sem trabalho formal, não terão direito a qualquer benefício social como seguro-desemprego ou FGTS. Então, muitos crentes estão temerosos não apenas pela pandemia de coronavírus, mas também pela perspectiva de ficar sem trabalho, sem poupança e sem assistência do Estado.

Como os evangélicos analisam o relacionamento de cristãos na política e avaliam esta aproximação entre o governo Bolsonaro e as bases das igrejas?

Durante um grande tempo a igreja evangélica brasileira se manteve alheia às questões políticas e sociais. Muito por causa da matriz teológica norte-americana que nos moldou, trazida pelos primeiros missionários que aqui chegaram, no século 19. Por causa dessa influência, grande parte do evangelicalismo brasileiro demonstrou pouco interesse em questões sociais e políticas. A preocupação maior residiria na preocupação em “salvar almas” para Cristo e numa escatologia [visão sobre o fim dos tempos] pessimista, que cantava: “Os vagões de trens vazios / Passam ruas e quarteirões / Aviões sem seus pilotos / Voam pra destruição / A cidade está deserta / Sua agitação parou / Surge a última noticia / Jesus Cristo já voltou”. A partir da década de 1980 surgiu um interesse político em dois segmentos: os neopentecostais, que começavam a crescer nos grandes centros urbanos brasileiros, usando as emissoras de rádio e depois canais de televisão, e com um interesse político-partidário pragmático; e, entre as igrejas históricas, também se viu um novo interesse por questões políticas; nesse caso, os líderes desse movimento mormente identificavam as pautas conectadas com a esquerda, representadas no Partido dos Trabalhadores, com uma agenda ética cristã.

Mais recentemente, surgiu um renovado interesse, sobretudo entre jovens evangélicos, por uma compreensão conservadora política. Isso se deu, sobretudo, pela influência e leitura de obras de Roger Scruton, Russell Kirk, Friedrich Hayek, Thomas Sowell, Raymond Aron e Richard Weaver, entre outros. Também leituras de João Calvino, Johannes Althusius, Samuel Rutherford, Abraham Kuyper, Francis Schaeffer e Wayne Grudem se tornaram importantes na formação de uma mentalidade conservadora política entre as lideranças evangélicas. Ainda que incipiente, tal movimento pode ter um longo alcance na sociedade, sobretudo pela defesa, entre outros, dos justos princípios constitucionais, da divisão de poderes na República e de um sistema de pesos e contrapesos, a alternância de poder, a separação de Igreja e Estado e as liberdades religiosa, de imprensa e de expressão.

"Mais recentemente, surgiu um renovado interesse, sobretudo entre jovens evangélicos, por uma compreensão conservadora política"

É difícil avaliar a aproximação dos evangélicos com o governo Bolsonaro. Se o movimento evangélico brasileiro é multifacetado, a aproximação também reflete esta diversidade. Pode-se dizer que houve apoio tanto velado como explícito por causa da onda antiesquerdista/antipetista que varreu o país, especialmente a partir de 2014; também houve apoio por afinidades com várias promessas de campanha, como por exemplo a mudança da embaixada brasileira em Israel para a cidade de Jerusalém – um tema caro a muitos evangélicos, sobretudo os pentecostais e neopentecostais, que apoiam o Estado de Israel; houve apoio em certos segmentos por um tipo de saudosismo da época em que o Brasil teve um governo militar, entre 1964 e 1985; também houve apoio fisiológico. Por exemplo, muitas lideranças evangélicas transicionaram sem nenhuma dificuldade ou mea culpa de um apoio ostensivo ao Partido dos Trabalhadores ao mesmo tipo de apoio dado ao atual presidente da República, agora sem partido. Parece-me que este apoio ao presidente se deu de forma mais cautelosa entre algumas lideranças, e de forma clara e aberta entre outras, notadamente aquelas ligadas às igrejas pentecostais e neopentecostais.

Quais os maiores desafios nos próximos anos no relacionamento Igreja e Estado, e Igreja e sociedade brasileira?

Parece-me que a igreja precisará buscar algum tipo de chave bíblica para se guiar nessa relação. A leitura atenta de Agostinho de Hipona, Martinho Lutero, João Calvino e Johannes Althusius pode ajudar, mas esta deve ser feita com cautela – sobretudo pela distância histórica e de contexto social. Mas há insights bíblicos preciosos nesses autores antigos que faríamos bem em ouvir atentamente. Escritores cristãos mais recentes, como Abraham Kuyper, Karl Barth e Bento XVI podem auxiliar para que as lideranças evangélicas tenham uma perspectiva mais robusta dos limites e independência entre Igreja e Estado, e também de possiblidades de cooperação entre ambas as esferas – assim como os políticos evangélicos precisarão aprender a se esforçar por traduzir seus valores na “linguagem universal” do debate democrático, lutando para não confundir as esferas da Igreja e do Estado.

Uma área em que a igreja evangélica pode ajudar é no fomento a associações voluntárias. E que, a partir delas, sejam fundadas escolas, faculdades, jornais, centros de recuperação, orfanatos etc. Esta é uma forma de o cristão evangélico desempenhar seu papel como cidadão responsável, e diminuir também o tamanho e o peso do Estado, para que este se concentre naquilo que é sua competência e cumpra seu papel com excelência.

"Políticos nunca podem ser colocados num pedestal. Eles devem ser colocados diariamente sob escrutínio"

Outra questão importante é que se espera que os cristãos votem bem, e com sabedoria. E cobrem resultados da classe política. Políticos nunca podem ser colocados num pedestal. Eles devem ser colocados diariamente sob escrutínio. As promessas devem ser cobradas. Assim como fidelidade à agenda político-partidária assumida em campanha.

Quais as lições que a pandemia pode dar à comunidade cristã evangélica brasileira?

Penso que é excelente ocasião para a igreja demonstrar sensibilidade social e amor ao próximo. Como há uma recomendação para que se evite ajuntamentos sociais como meio de evitar a propagação do novo coronavírus, entendemos ser prudente seguir as sugestões da contenção social. Com isso, igrejas deveriam suspender seus cultos públicos dominicais e encontros de estudo bíblico. Estas são medidas de prevenção e demonstração de amor ao próximo. Não é uma questão de se temos ou não medo da enfermidade ou do sofrimento dela decorrente, mas de cuidarmos e servirmos às pessoas que nos cercam, assim como a cidade onde vivemos.

Mas, com o isolamento social, um dos riscos a se enfrentar é o medo. É viver cativo do medo de ser infectado. E o medo aliado à solidão impacta muito seriamente a vida das pessoas, podendo gerar pânico. Então, igrejas podem criar encontros virtuais para conectar as famílias da igreja, podem criar formas criativas de transmitir as prédicas pela internet. Os cristãos podem se prontificar a auxiliar outros – por exemplo, um vizinho cristão distribuiu cartazes no bairro onde moro se prontificando a ir ao supermercado para fazer compras para aqueles em situação de risco. Pode-se usar as redes sociais para oferecer aconselhamento, formar grupos de oração, transmitir reflexões etc. A igreja cristã nunca dependeu de templos, e as redes sociais oferecem um leque de possibilidades imensas de serviço ao próximo e louvor ao Deus uno e trino.

Os pastores também podem auxiliar as famílias a estreitarem seus laços afetivos. Podem oferecer ideias para o uso do tempo em casa, para que as famílias, juntas, tenham boas conversas, relaxem num ambiente protegido, mas também tenham conversas sérias, meditação bíblica e oração. Eu preparei uma carta pastoral e gravei um vídeo com sugestões de recursos para as famílias da igreja em que congrego, especialmente para ajudar as mães e pais que precisam lidar com os filhos pequenos nessa situação de isolamento social.

"O medo aliado à solidão impacta muito seriamente a vida das pessoas, podendo gerar pânico"

Como cristãos, somos homens e mulheres de fé em Deus e em sua imensa graça. Cremos na vida eterna dada a todos que se arrependem de seus pecados e creem em Cristo Jesus como salvador e perdoador, mas, por causa da ressurreição do único Messias e Filho de Deus, também temos a esperança do triunfo da causa de Deus, o Rei, e aguardamos a vinda da “cidade santa, a nova Jerusalém [...] da parte de Deus” – quando “toda lágrima” será enxugada e já não haverá mais “morte [...], [nem] luto, nem pranto, nem dor”.

Enquanto vivemos nessa crise, munidos de fé e esperança, devemos aproveitar essa situação que está diante de nós. Em vez de – como aqueles que não têm esperança – se deixar afundar no medo, pânico ou desespero, que aproveitemos corajosamente esse novo tempo.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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