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Crônicas de um Estado laico

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Novo Pontífice

Leão XIV entre as planilhas e a providência: uma crise que desafia a alma e a estrutura da Igreja Católica

(Foto: Ettore Ferrari/EFE)

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A fumaça branca saiu da chaminé da Capela Sistina no mesmo compasso em que o vermelho se acentua nas contas do Vaticano. A eleição de Leão XIV, o primeiro Papa norte-americano, não acontece apenas em um marco simbólico da história católica — ela inaugura um papado sob pressão, de dentro e de fora, em meio a um cenário que expõe, com clareza desconcertante, a tensão permanente entre a vocação espiritual da Igreja e sua necessidade de sobreviver como instituição no mundo real.

O novo pontífice assume um trono carregado de herança teológica, mas também de boletos. A Igreja Católica, que já foi o maior poder político do Ocidente, agora é desafiada por um problema bem mais “mundano”: o vil metal. Ou melhor, a falta dele. Em 2023, a Santa Sé encerrou o ano com um déficit de R$ 435 milhões. O fundo de pensão dos funcionários do Vaticano acumula um rombo de R$ 4 bilhões. E, mesmo com um patrimônio imobiliário global estimado em R$ 17 bilhões, e receitas expressivas com turismo religioso e doações, o Vaticano depende de repasses voluntários para 45% de sua receita. O Óbolo de São Pedro, tradicional coleta anual dos fiéis para as obras da Igreja, arrecadou R$ 330 milhões — menos da metade das despesas.

O que emerge, mais do que números frios, é um desafio de legitimidade institucional. A Igreja precisa prestar contas, mas não apenas no sentido financeiro: precisa reconquistar a confiança dos que ainda acreditam que sua missão vale o investimento de tempo, fé e recursos. É aqui que o Direito Religioso se vê diante de uma encruzilhada complexa. Não basta garantir à Igreja sua liberdade de crença, culto ou organização interna. É necessário refletir sobre como um organismo de natureza espiritual pode — e deve — lidar com sua faceta institucional. A proteção jurídica da autonomia religiosa não pode servir de escudo para má gestão, omissão ou desorganização crônica.

O colapso não aconteceu do dia para a noite. Ele é fruto de décadas de falta de controle. Desde sua criação, em 1942, o Instituto para as Obras de Religião (IOR) — o famoso Banco do Vaticano — já foi acusado de lavar dinheiro, ocultar doações, alimentar redes de corrupção. Em 2012, uma auditoria revelou que a Santa Sé não cumpria mais da metade das normas internacionais contra crimes financeiros e sequer sabia quanto cada departamento gastava. Francisco tentou corrigir o curso: criou a Secretaria para a Economia, nomeou especialistas laicos com experiência em bancos e mercados, e ameaçou fechar o IOR se as reformas não fossem feitas. Pela primeira vez na história recente, a Cúria foi obrigada a prestar contas.

O cardeal George Pell, nomeado para liderar essa cruzada reformista, virou símbolo da nova administração. Mas enfrentou resistência interna, teve documentos vazados à imprensa, foi alvo de denúncias que mais tarde seriam anuladas — e acabou afastado. Com sua saída, a agenda reformista perdeu fôlego e abriu espaço para um novo escândalo. Em 2018, veio à tona um negócio imobiliário em Londres: um prédio de R$ 2 bilhões que deveria ser convertido em apartamentos de luxo, mas acabou afundado em contratos suspeitos e gerou um prejuízo de R$ 780 milhões. O cardeal Angelo Becciu foi condenado pelo caso.

Ainda assim, nem tudo foi em vão. O Moneyval, órgão europeu que monitora lavagem de dinheiro, reconheceu os avanços do Vaticano e adiou uma nova auditoria para 2028. Entre 2013 e 2015, mais de 3.500 contas suspeitas foram encerradas, e a PriceWaterhouseCoopers (PwC) chegou a ser contratada para auditar os balanços da Santa Sé. Mas a resistência interna à transparência segue como um obstáculo que parece teológico, mas é profundamente administrativo.

A eleição de Leão XIV, nesse contexto, é mais do que uma escolha eclesial: é uma convocação a um novo tipo de liderança. Um Papa que, além de pastor das almas, terá de ser administrador de uma estrutura em crise. Um Papa que precisa falar de fé, mas entender de planilha. Porque, nesta nova era do Vaticano, ser cabeça visível da Igreja invisível exige olhar para o céu — mas sem tirar os olhos do caixa.

Talvez nunca tenha sido tão claro que uma organização religiosa precisa se atentar para a face administrativa de sua existência. Se a Igreja pretende continuar proclamando as realidades eternas, precisa também encarar os limites do tempo presente.

Ainda assim, há sinais de esperança. Leão XIV não é um estranho à administração de estruturas complexas: por anos, liderou a Ordem de Santo Agostinho como superior-geral — cargo que, além de exigir profundidade teológica, demanda governança, escuta comunitária, negociação entre culturas e equilíbrio entre tradição e renovação.

O estilo agostiniano, marcado pela interioridade e pela busca honesta da verdade, pode oferecer à Cúria um novo ritmo: mais racional, mais transparente e mais pastoralmente eficiente. Talvez este Papa tenha vindo não apenas para acalmar os ânimos da fé, mas para arrumar a casa com serenidade, sem espetáculo — e com autoridade moral.
Porque, no fim das contas — e agora mais literalmente do que nunca —, o Reino também precisa fechar as contas no azul.

Créditos para a formação deste texto, a partir de dados colacionados e postados pelo perfil “Bastidores do Poder”, publicação que se pode ver aqui.

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