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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

Liberdade religiosa na internet

Cidadania, liberdade e a nova ágora digital: o retorno do ostracismo?

liberdade religiosa na internet
Imagem ilustrativa. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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Falar de cidadania atualmente exige muito mais do que repetir velhos chavões sobre direitos civis ou citações da Constituição Cidadã. A cidadania não é carimbo no RG, muito menos medalha pendurada no peito por ter votado no domingo. Ela é, antes de tudo, a expressão da dignidade da pessoa humana. Está lá, no artigo 1.º, II da Constituição brasileira: um dos fundamentos da República. Bonito, não? Mas é mais do que bonito – é sério. É o reconhecimento de que o ser humano é sujeito de direitos, corresponsável pela coletividade e com poder (não favor!) de intervir nos destinos da polis. Ou da urbe. Ou do grupo do Zap da comunidade. Onde for.

Mas não há como falar de cidadania hoje em dia e esquecer da vida digital. A realidade meramente analógica é coisa do passado. Agora, basta um smartphone com a tela trincada, wi-fi e pronto: você está no novo espaço público. O digital virou ágora. Mas com uma diferença perigosa: aqui o ostracismo não vem com votação popular; vem com um clique. Um “ban”, um “cancelamento”, e lá se vai a dignidade humana para a lixeira da timeline. Os tribunais virtuais que o digam, como já avisou nosso amigo Franklin Ferreira aqui na Gazeta.

Nesse novo cenário, surge a cidadania digital. Não é luxo, mas necessidade. As tecnologias da informação e comunicação se tornaram a espinha dorsal da vida em sociedade. Elas ampliaram o acesso à informação, à participação e à liberdade. Tocqueville sorri do além: as “condições gerais de igualdade” ganharam um perfil no Instagram.

Qual é o núcleo da liberdade religiosa? Ensino. Proselitismo. Culto. Sem ensino, ninguém crê. Sem proselitismo, ninguém conhece. Sem culto, ninguém adora

Mas, como tudo na vida, isso tem um preço: novos desafios surgem. E aqui chegamos ao ponto. A cidadania digital potencializa os pilares de qualquer democracia minimamente saudável: liberdade e igualdade. E isso inclui a pessoa religiosa, com seu direito de existir, crer, ensinar, anunciar e adorar – também na internet. E aí a coisa esquenta.

Porque a liberdade religiosa – essa que deveria ser inegociável – começa a apanhar feio nas redes. Sofre “jabs” retóricos e “ganchos” ideológicos. É chamada de intolerante por existir. Sim, por existir. O problema não é o que se diz, mas o fato de se crer. O digital virou território de caça – e a fé é a presa da vez.

Vamos com precisão cirúrgica: liberdade religiosa é direito fundamental. Protege o direito de a pessoa exercer sua crença, está ancorada no direito de ter, não ter, mudar ou manter sua fé. Ela viabiliza o pluralismo político e a própria democracia, garantido a dignidade da pessoa humana. Mas – e aqui está o pulo do gato – vivemos numa sociedade plural. Logo, a pluralidade dói. E tem de doer. Se não há desconforto, não há pluralismo, só bolha. Sem dor, sem lucro. O ser humano precisa do desconforto para florescer e o melhor ambiente para isto é o plural, proporcionado apenas por uma democracia pujante que não abra mão, de jeito nenhum, da liberdade religiosa.

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Aí vem o desafio jurídico: o que fazer quando dois direitos fundamentais colidem? Não vale jogar moeda. Muito menos hierarquizar de forma tosca ou vir com aquela máxima furada que “o meu direito termina quando começa o seu”. Isso vale para direitos comuns, de forma nenhuma para direitos fundamentais, do contrário deixariam de ser fundamentais, como ensina o bom alemão Alexy. É preciso ponderar, avaliar proporcionalidade, necessidade e adequação, sempre protegendo o núcleo essencial do direito fundamental.

Sim, núcleo. Palavra mágica. E qual é o núcleo da liberdade religiosa? Ensino. Proselitismo. Culto. Sem ensino, ninguém crê. Sem proselitismo, ninguém conhece. Sem culto, ninguém adora. Sem isso, a liberdade religiosa é só artigo decorativo de Constituição.

Estado laico não é Estado burro. Há limites. Calúnia, injúria e difamação não viram evangelho só porque foram ditas em nome da fé. A linha é tênue, mas existe. E é aqui que entram os critérios: o STF já traçou diretrizes (nos casos Ellwanger, do padre Jonas Abib etc.), assim como o Plano de Rabat da ONU. Viés cognitivo, valorativo e aplicação. Não é sobre agradar ou não. É sobre violar ou não o núcleo duro da ordem democrática.

Se a cidadania é o rosto da dignidade, então a cidadania digital religiosa é a luta para não apagar esse rosto da tela

O problema não é punir quem ultrapassa essa linha. O problema é cancelar quem pensa diferente, quem crê diferente, quem expressa sua fé em público. Isso não é regulação. Isso é ostracismo moderno. É empurrar o cidadão religioso para fora da polis digital. É fazer do feed uma arena vazia e sem pluralidade. E sem pluralidade, a democracia vira farsa.

Se a cidadania é o rosto da dignidade, então a cidadania digital religiosa é a luta para não apagar esse rosto da tela. Não é sobre likes, seguidores ou engajamento. É sobre não ser silenciado. Porque, como bem sabemos, liberdade de expressão é a liberdade-meio de todas as demais. Quando ela cai, todas as outras desabam junto.

No fim das contas, o jogo segue o mesmo: ou protegemos o núcleo dos direitos fundamentais, incluindo da liberdade religiosa, ou acabaremos de novo como na Grécia Antiga – com uma liberdade que só vale pra quem agrada os donos da assembleia.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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