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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

Liberdade religiosa

Reclama do STF? A Corte Interamericana consegue ser (ainda) pior

Nancy Hernández López, Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. (Foto: Gustavo Moreno/SCO/STF)

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Há tempos temos denunciado, tanto nesta coluna quanto por meio do Instituto Brasileiro de Direito e Religião — em colaboração com seu Grupo de Estudos, o GECL —, em parceria com seu Grupo de Estudos sobre a Colaboração entre Igreja e Estado (GECL), as crescentes e preocupantes violações à liberdade religiosa no Brasil.

Essas denúncias se materializam em textos técnicos, pareceres jurídicos, ações institucionais e, não raro, em resistência pública diante de arbitrariedades e omissões do poder estatal.

Apesar da gravidade de muitos desses episódios, é necessário reconhecer que o Supremo Tribunal Federal tem, em linhas gerais, consolidado uma jurisprudência relativamente robusta em matéria de liberdade religiosa — com exceção clamorosa da ADPF 811, em que o Tribunal desconsiderou sua própria trajetória jurisprudencial e os fundamentos constitucionais do tema.

Ainda assim, em sua maioria, as decisões do STF reconhecem a liberdade religiosa como um direito fundamental de dupla dimensão — individual e coletiva —, protegendo inclusive seu exercício público em contextos adversos, bem como a dinâmica constitucional da nossa laicidade colaborativa.

Infelizmente, esse mesmo padrão não encontra eco na esfera internacional. Enquanto a Europa conta com uma Corte Europeia de Direitos Humanos que assegura de forma reiterada a efetividade da liberdade religiosa em suas múltiplas dimensões — culto, ensino, expressão, organização —, o continente americano padece de um grave déficit institucional.

A verdade é dura, mas precisa ser dita: se nossa liberdade religiosa depender da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), estamos completamente desamparados. Para vocês terem uma ideia, desde que existe a Corte, apenas DOIS casos sobre liberdade religiosa foram julgados (Olmedo Bustos e outros v. Chile e Sandra Cecilia Pavez Pavez v. Chile) e, ainda, ambas as decisões foram contra a liberdade religiosa!

E parte dessa tragédia nos é atribuível. O Brasil, assim como outros países da região, utiliza muito pouco os mecanismos do Sistema Interamericano. Pouquíssimos casos chegam à Comissão, menos ainda à Corte.

A maioria dos operadores do Direito desconhece completamente o funcionamento do sistema e sequer identifica a liberdade religiosa como um direito suscetível de tutela internacional. O resultado é duplamente desastroso: não há quem denuncie, nem quem julgue. A liberdade religiosa é silenciada tanto na demanda quanto na resposta.

O silêncio da CIDH diante das violações à liberdade religiosa no continente é mais do que omissão. É sintoma de uma patologia institucional que vai além de entraves procedimentais ou obstáculos técnicos.

Trata-se de um problema estrutural, agravado por uma contaminação ideológica crescente, que relega a liberdade religiosa à condição de direito de segunda classe — um luxo opcional, e não um fundamento civilizacional.

É verdade que o caminho até a Corte é tortuoso: exige o esgotamento de recursos internos, o crivo da Comissão — hoje majoritariamente capturada por um viés progressista —, recursos financeiros vultosos, paciência para enfrentar anos de trâmite e familiaridade com um sistema jurídico internacional ainda obscuro para a maioria dos profissionais do Direito.

E mesmo quando esses obstáculos são superados, o que se encontra na porta de entrada é um filtro ideológico que favorece determinadas pautas — gênero, sexualidade, aborto — enquanto despreza, ignora ou até combate a liberdade religiosa.

A Comissão Interamericana deixa, muitas vezes, de ser um órgão técnico para atuar como instrumento de uma militância que seleciona quais direitos merecem defesa, e quais devem ser silenciados. E aqui está o ponto central: a liberdade religiosa representa justamente o maior desafio à hegemonia da chamada agenda woke.

Sua efetividade jurídica desestrutura qualquer projeto totalizante de moral estatal, pois garante um espaço democrático onde todas as vozes podem coexistir — inclusive aquelas que se opõem à nova ortodoxia secular.

Não por acaso, quando a liberdade religiosa é relativizada, todas as demais começam a definhar. Sem ela, desaparecem a liberdade de expressão, a liberdade de consciência, a liberdade acadêmica, a liberdade de associação e até a liberdade econômica.

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A laicidade defendida hoje pela Corte Interamericana já não é a da não interferência estatal nem da proteção equânime da pluralidade. É uma laicidade instrumentalizada para impor uma nova ortodoxia ideológica — aquela que cancela, ridiculariza e marginaliza qualquer fé que não se submeta ao dogma identitário do momento.

O que se observa é uma tentativa de exportar o laicismo francês — já plenamente incorporado no Canadá e no México — para toda a América Latina. E nesse cenário, quem perde não são apenas os religiosos, mas o próprio ideal de liberdade que deveria sustentar a ordem democrática.

Ainda há tempo para reagir. Mas isso exigirá coragem: coragem dos juristas que se recusam a se curvar à militância disfarçada de técnica; coragem das igrejas e de seus fiéis em assumir protagonismo na defesa das liberdades fundamentais; coragem das universidades em resgatar a pluralidade de pensamento; coragem das organizações civis em denunciar o viés ideológico da Comissão e da Corte Interamericana; e coragem dos Estados em reequilibrar a representação regional no sistema interamericano. Só assim a liberdade religiosa — e com ela todas as demais — poderá voltar a ocupar o lugar que lhe é devido: o de fundamento inegociável de toda sociedade verdadeiramente livre.

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