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Crônicas de um Estado laico

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Silas Malafaia

Quando até o sermão vira “evidência” criminal

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Pastor Silas Malafaia durante discurso na Avenida Paulista (SP) (Foto: Reprodução/Youtube/Silas Malafaia)

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Não bastasse confiscar passaporte, agora o Brasil inaugura uma nova modalidade de repressão: a criminalização dos sermões. O pastor Silas Malafaia, incluído em um inquérito do Supremo Tribunal Federal, viu não apenas sua liberdade de ir e vir cerceada, mas também a apreensão de quatro cadernos pessoais – três deles contendo sermões, rascunhos de púlpito e anotações pastorais.

A pergunta é inevitável: desde quando rascunhos de sermão são matéria-prima de investigação criminal?

O gesto não é apenas desproporcional. É simbólico. É intimidador. É como se dissesse a cada um dos milhares de pastores do país: “Cuidado com o que você prega. Pode ser que o Estado resolva interpretar sua teologia em chave penal”.

O IBDR repudiou publicamente esse ato. E não por defender uma pessoa em particular, mas por defender um princípio. Sermões pertencem à esfera da fé, proclamação e ensino religioso, não à do processo penal. Não no Brasil. A Constituição, no artigo 5.º, VI e VIII, protege a liberdade de culto, consciência e liturgia. Não é uma cláusula ornamental; é cláusula pétrea.

Desde quando rascunhos de sermão são matéria-prima de investigação criminal?

No entanto, acompanhamos a reação ao nosso posicionamento e constatamos uma confusão conceitual generalizada. Muitos consideram que o simples fato de um pastor se pronunciar sobre política já seria um escândalo – um desvio da laicidade. Eis o equívoco. O que pode ser motivo de debate teológico não é, necessariamente, uma violação constitucional.

A laicidade brasileira é colaborativa. O pluralismo político é fundamento da República (artigo 1.º, V). A teologia de cada comunidade de fé tem liberdade para decidir se participa ou não da vida pública. É a própria essência da autonomia religiosa. Negar esse direito equivale a amputar um pedaço da democracia.

E o pano de fundo dessa nova cruzada simbólica já estava sendo preparado. Não é coincidência que, semanas antes, a cineasta Petra Costa tenha lançado na Netflix o documentário Apocalipse nos Trópicos, que já comentamos aqui e no qual o pastor Malafaia é retratado como o estereótipo máximo do “evangélico perigoso”. O roteiro estava pronto: basta enquadrar o religioso como ameaça e, em seguida, justificar a apreensão dos seus sermões.

É assim que símbolos se convertem em instrumentos de poder. Hoje, apreendem-se os cadernos de um pastor de projeção nacional. Amanhã, por coerência, porão as mãos nos esboços de qualquer pregador anônimo em uma igreja de bairro.

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Defender a liberdade religiosa não é defender Silas Malafaia. É defender o direito de cada líder espiritual – seja pastor, padre, rabino ou pai de santo – de pregar sem a sombra da suspeita penal. Porque, se a pregação vira prova criminal, a democracia já não é mais democracia: é apenas uma farsa de liberdade, administrada pelo medo.

Para conhecimento, eis o inteiro teor da nota pública que o IBDR emitiu com relação ao caso:

Nota de repúdio

O Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), por meio de seu presidente e do presidente de seu Conselho Deliberativo, após deliberação em reunião de seu Conselho, na qual se decidiu, por maioria, pela emissão desta nota, vem a público manifestar seu repúdio à inclusão do Pr. Silas Malafaia em inquérito policial federal, bem como às medidas coercitivas recentemente adotadas contra ele, incluindo a apreensão de seu celular, de seu caderno de pregações e de seu passaporte.

O Instituto Brasileiro de Direito e Religião manifesta sua firme preocupação diante da inclusão do Pr. Silas Malafaia em inquérito policial federal, bem como das medidas coercitivas recentemente adotadas contra ele, como a apreensão de seu celular, caderno de pregações e passaporte.

Defender a liberdade religiosa não é defender Silas Malafaia. É defender o direito de cada líder espiritual de pregar sem a sombra da suspeita penal

Não se trata mais apenas de uma investigação, mas da adoção de atos concretos de constrangimento que, além de questionáveis sob o aspecto jurídico, possuem claro potencial intimidatório. Tais medidas assumem uma gravidade ainda maior por recaírem sobre um líder religioso em razão de suas manifestações públicas – manifestações essas que, embora veementes, se inserem na arena das ideias e não no campo da ilegalidade. A liberdade de expressão não é privilégio, mas fundamento da vida democrática. Ela garante a todo cidadão – inclusive os que professam fé – o direito de manifestar suas convicções, inclusive sobre questões políticas, sociais e morais. Esse direito, quando exercido por líderes religiosos, deve ser protegido com atenção redobrada, uma vez que tais lideranças representam não apenas sua consciência pessoal, mas comunidades inteiras de fé.

A tentativa de dissociar o religioso do cidadão – como se a voz do púlpito não pudesse ecoar na praça pública – é uma mutilação da liberdade. E quando essa voz é confrontada não com argumentos, mas com ações coercitivas do Estado, toda a sociedade deve ficar em alerta.

Mais do que o desconforto com opiniões fortes, é o silêncio institucional diante de sua supressão que enfraquece a democracia. A fé, com suas consequências éticas, sociais e políticas, é parte legítima do tecido público. Calar o discurso político feito por um líder religioso – ainda mais por meios que insinuam punição ou retaliação – não apenas intimida a pessoa, mas desencoraja outros a exercerem sua liberdade de consciência e sua cidadania de forma íntegra e responsável.

Não se pode negar que a religião é um elemento legítimo da vida pública. Quando o Estado trata a participação cidadã de líderes religiosos como algo suspeito ou passível de punição, não está apenas reprimindo uma voz, mas reduzindo a própria possibilidade de pluralidade e liberdade, fundamento do Estado brasileiro e da civilização humana tal como a concebemos.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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