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180.000 mortos
Vários países já começaram a vacinação contra a Covid-19 usando a vacina desenvolvida pela Pfizer/BioNTech.| Foto: Bigstock

Assistimos a mais um capítulo do desmonte constitucional perpetrado pelos... guardiões da Constituição. O Supremo Tribunal Federal é o destino final de todas as políticas públicas do Executivo do dia, de todas as disputadas e dificuldades de relacionamento no parlamento, e também hoje é o definidor do alcance – ou limitação – das liberdades mais íntimas das pessoas, quais sejam, a de pensar, crer e se expressar.

Para não ficar uma coisa do tipo filme apocalíptico, pelo menos não liberaram os estados e municípios para usar de força policial para obrigar fisicamente as pessoas a se vacinarem. Disseram que a vacina pode ser “compulsória”, mas não “coercitiva”. Mas que belo papelão! Esta foi, na verdade, a grande “lavada de mão” dos ministros, que querem entrar para a história como tendo feito a sua parte no intuito de proteger o povo brasileiro – que, por decorrência lógica, não tem capacidade de discernir sobre a conveniência ou importância do tema, ou de levantar objeções válidas de consciência quanto ao uso da vacina, pelo menos nesta primeira etapa, onde os testes não acabaram e sabe-se lá o que vem pela frente.

Porém, uma situação envolvida na sessão de julgamento merece uma atenção, especialmente nesta coluna. Trata-se do pedido de autorização, feito por um casal adepto do veganismo, para desobrigar-se à vacinação dos filhos menores. O processo corre em segredo de Justiça; portanto, não temos acesso aos nomes dos envolvidos. Mas o que nos interessa para fins de posicionamento em relação à laicidade brasileira é o alcance de uma norma que pretenda restringir a liberdade de consciência por motivo religioso (e, aqui, cabe também filosófico, moral ou existencial).

É válido garantir a liberdade de quem não queira ser imunizado ante a absoluta incerteza sobre o tema mesmo na comunidade científica

Em nossa obra Direito Religioso enfrentamos o caso semelhante envolvendo a sempre polêmica situação da transfusão de sangue e as Testemunhas de Jeová, que por convicção doutrinária são contra a prática. Há uma ponderação, na análise de valores constitucionais em aparente conflito, para que o intérprete da lei possa aplicar o direito de forma a buscar a justiça da melhor maneira.

No caso da transfusão de sangue recusada por paciente maior de idade e absolutamente capaz, entendemos, como explicamos em nossa obra, que a pessoa tem autodeterminação derivada do próprio princípio da dignidade da pessoa humana. Ou seja, no caso específico, a pessoa está presa a um compromisso de consciência em que buscará todas as formas possíveis de obter a cura, desde que isso não degenere em um “bem” que se transformará em um “mal perpétuo”, por conta da visão religiosa segundo a qual o sangue humano carrega, além de atributos biológicos, atributos espirituais de cada pessoa, inclusive o fruto de seus vícios e pecados. Viver é um direito basilar. Porém, de forma coercitiva e forçada – ao arrepio dos mais íntimos instintos de pessoa plenamente capaz e com idade para tomar decisões sobre si –, obrigar alguém a usar de meio espiritualmente impuro em sua convicção é uma violência desautorizada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, do qual decorre a própria liberdade de expressar tal convicção.

Já quando se trata de um menor de idade com sua vida ameaçada, sob a guarda de pessoas que expressam esta fé religiosa (ou convicção filosófica semelhante), o quadro muda. E o motivo é o seguinte: enquanto no maior de idade e plenamente capaz a dignidade lhe é conferida justamente para acomodar o exercício de sua opção de vida (de sua busca pela felicidade, como diriam os americanos) alinhada ao seu propósito existencial, no caso do menor falta-lhe justamente o elemento cuja ausência o torna vulnerável: a plena autonomia de vontade.

A doutrina chama isso de “princípio da condição peculiar da pessoa em desenvolvimento”.  Isto significa que a criança e o adolescente, além de todos os direitos e garantias fundamentais que são constitucionalmente assegurados a todos, possuem um caráter de especial proteção (segundo o artigo 3.º da Lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente) dirigido à família (seus responsáveis), à sociedade (o conjunto de famílias e demais instituições da unidade política) e ao Estado (como ferramenta da sociedade política para o bem comum).

Portanto, é dever de todos o facultar – no sentido de permitir que aconteça – o “desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” (como diz o mesmo artigo 3.º). É neste passo que, mesmo com convicções morais, religiosas, filosóficas ou existenciais que possam ter os guardiães de menores, será, sim, dever dos responsáveis que, até a plenitude do desenvolvimento, sejam estes realmente protegidos, inclusive quando o assunto é imunização por vacinas que possam ferir as convicções dos mesmos responsáveis.

Quanto ao caso da pandemia, o exemplo dado da transfusão de sangue ainda fica um tanto mais distante por causa do fato de que, neste último caso, a decisão afeta especificamente a própria pessoa (o fato de não aceitar a transfusão); no caso da atualidade, ainda há o fato de estarmos em plena crise de saúde pública – embora seja válido garantir a liberdade de quem não queira ser imunizado ante a absoluta incerteza sobre o tema mesmo na comunidade científica – e, afinal, porque as liberdades civis fundamentais já sobreviveram a 12 pandemias.

Aviso: A coluna não será publicada em 26 de dezembro e 2 de janeiro. Retornamos em 9 de janeiro.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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