Há alguns dias vem repercutindo uma notícia de que o Hospital São Camilo, de São Paulo - mantido pela Sociedade Beneficente São Camilo, ligada à ordem dos camilianos, que remonta ao século XVII, com São Camilo de Lellis -, está impedindo que procedimentos de implantação do dispositivo intrauterino (DIU), sejam feitos em suas instalações.
Isso gerou reclamações por parte de mulheres que gostariam de fazer o procedimento ali, bem como de médicos que também criticam a postura do hospital. A própria Comissão de Bioética da OAB/SP se pronunciou contra a instituição, dizendo que a mesma não pode interferir na autonomia médica. Disseram que uma pessoa jurídica não tem “consciência” para poder, então, objetar a algum tipo de situação que a violaria – direito fundamental estabelecido na Constituição de 1988 às pessoas naturais.
O hospital emitiu nota pública dizendo que, por ser uma “instituição confessional católica, tem como diretriz não realizar procedimentos contraceptivos, em homens ou mulheres. Tais procedimentos são apenas em casos que envolvam riscos de manutenção à vida”. Foi o bastante para uma onda de pessoas enfurecidas: a bancada feminista do PSOL da capital paulista entrou na Justiça pedindo que seja declarada ilegal a postura do hospital; denúncias foram feitas ao Ministério Público, e especialistas têm discutido bastante o tema.
As tintas usadas são conhecidas: uma postura religiosa retrógrada ante a visão de direitos humanos de controle de natalidade; a visão que se choca com o “meu corpo, minhas regras”, a ousadia de uma entidade em não se enquadrar e dizer que não o faz porque sua diretriz religiosa assim se impõe como regra de prática.
Apesar de não se ter, efetivamente, a figura da “objeção de consciência” atribuída para pessoa jurídica, o que se trata aqui é de outra nuance do direito fundamental à liberdade de crença e liberdade religiosa
Estes são feixes de direitos amplamente protegidos pela Constituição, no ambiente da laicidade colaborativa.
Entre os direitos de liberdade religiosa individual, a doutrina jurídica destaca que se podem elencar, os direitos de: expressão (da fé, em privado ou público); ensino e aprendizagem; culto (privado ou público, sozinho ou em comunidade); proselitismo (a pregação da doutrina religiosa para alcançar novos fiéis); objeção de consciência e assistência.
Já na dimensão da liberdade religiosa coletiva, também se adiciona o direito de organização. Esta dimensão mostra que, para além da soma de individualidades, a liberdade institucional é dotada de um elemento chamado autodeterminação, princípio, inclusive, parecido com o do próprio Estado, ao poder ter a liberdade de se constituir. Isso ocorre pelo fato de a religião ser elemento essencial da experiência humana: todo o ser humano responderá às questões existenciais da transcendência, e isto moldará também sua visão de mundo e ética aplicada à conduta de sua vida, seja com uma afirmação de reconhecimento da tríade “divindade, moralidade, culto”, ou sua negação.
A autodeterminação religiosa se desdobra em autocompreensão (o entender-se como confissão depositada na comunidade de crentes e que existe por si); autodefinição (o posicionamento imanente da comunidade moral religiosa em sua ação no mundo, seja através do templo (para o culto), da cátedra (para o ensino) ou da misericórdia (para o exercício da caridade na prática); auto-organização e auto-administração (estruturação propriamente sistemática de como vão levar a cabo sua missão institucional, de acordo com as diretrizes emanadas da confissão religiosa); e, por fim, autojurisdição e autodissolução, características de que a própria confissão resolve os conflitos gerados pelo choque natural entre pessoas no contexto do desenvolvimento dos misteres religiosos e a eventual dissolução da entidade).
Tudo isso pra dizer que uma ordem religiosa, no Brasil, está amparada pela doutrina internacional de proteção ao sistema de direitos humanos tanto quanto um paciente que queira adotar o método contraceptivo. São direitos elevados à fundamentais. A ordem camiliana diz que se empenha em promover a vida, “desde o momento inicial até o seu fim natural” (Carta de Princípios Camilianos, que você pode ler aqui).
Este direito de exercício do hospital se dá pelo princípio de autodeterminação religiosa, protegido pela Constituição, simples assim. Na nota que o hospital entrega quanto à celeuma gerada, diz que os pacientes podem, a qualquer momento, procurar “na rede referenciada de seu plano de saúde hospitais que tenham esse procedimento contratualizado”. Não há melhor forma de ponderar direitos: respeite-se o direito individual de usar o DIU, sem matar o direito de manter-se fiel à ordem religiosa que criou, investiu e mantém este estabelecimento de saúde.
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